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INTRODUÇÃO: MAGNITUDE DO PROBLEMA
Desde os primórdios da medicina tenta-se tratar o mais freqüente dos sintomas: a dor. Esta é uma condição cotidiana, que expressa o sofrimento humano nas suas mais variadas formas. Durante as últimas duas décadas tem-se evidenciado, de modo sistemático, que o seu entendimento e controle pode ajudar a humanizar o atendimento, bem como a melhorar os resultados em grande parte das abordagens terapêuticas – em especial, na cirurgia, no câncer e nas patologias mioarticulares.(1) Na maioria das vezes, a dor está associada a grande número de doenças conhecidas e, com freqüência, é causa de seqüelas psíquicas e somáticas.(2)
Em estudo epidemiológico extenso sobre prevalência de sintomas na comunidade, a dor foi a segunda queixa mais freqüente entre as 38 pesquisadas, ficando atrás somente das queixas menstruais e, na maioria das vezes, mostrou ser o fator desencadeante de procura do serviço médico.(3)
No entanto, o que se tem observado é que a dor não é tida como um problema a ser combatido com medidas específicas e efetivas, a despeito dos avanços científicos, o tratamento da maioria dos pacientes continua inadequado,(4) apesar de semelhante postura já ter sido reiteradas vezes considerada inaceitável – tanto do ponto de vista científico quanto ético – pelos mais diversos comitês e conselhos de saúde.(5) A incidência de dor em pacientes internados ainda é alta, de 30% a 50% de dor moderada até intensa nas publicações recentes.(6,7) Note-se que os principais problemas apontados relacionam-se à falha na formação do médico e na abordagem do problema por esse profissional.(1,8,9)
Mesmo com os progressos obtidos no controle da dor, a defasagem, no Brasil, ainda é significativa, em particular por tratar-se de problema complexo, que envolve soluções multidisciplinares. A falta de tradição na área de saúde para o trabalho em equipe e a resistência em mudar têm gerado dificuldades em se propor e organizar serviços intra-institucionais, que envolvam várias especialidades com estruturas e objetivos únicos.(10)
Mesmo em países desenvolvidos, a mudança constitui um desafio, havendo relatos de que só 42% dos hospitais contam com clínica de dor e programas multidisciplinares, apesar de os resultados demonstrarem inequivocamente o significativo benefício aos pacientes e a redução de custos para as instituições que implementaram esses serviços.(1,11,12)
Em nosso país, muito pouco tem sido feito por parte das instituições de ensino, do governo e da saúde suplementar no sentido de minimizar esse problema. Observe-se que poucas escolas médicas têm disciplinas no currículo que abordem o assunto com a relevância merecida. Acresce-se a isso que se tem ainda um dos mais baixos índices de utilização per capita de opióide,(13) ao passo que o número de profissionais médicos habilitados junto à Vigilância Sanitária para prescrevê-los é baixo (< 2% do número total de médicos).(14)
Os serviços de dor restringem-se a poucos hospitais universitários, onde, em geral, são organizados por iniciativas pessoais ou de alguns profissionais interessados no assunto, em sua maioria com o objetivo de tratar a dor crônica. Esses dados podem indicar um baixo nível de preocupação dos agentes de saúde em tornar efetivo o controle do sofrimento dos pacientes, o que expressa, por conseguinte, o caminho oposto a todos os esforços que se têm feito no sentido de humanizar o atendimento.(15)
IMPORTÂNCIA DO CONTROLE DA DOR
O controle da dor, que se restringiu, no passado, a um dos cuidados oferecidos ao paciente com câncer terminal, para a boa prática médica, hoje deve fazer parte obrigatória dos cuidados prestados a todos os pacientes.
Recentemente – julho de 2002 – a Joint Commission on Accreditation of Health Care Organization (JCAHCO) incluiu o controle da dor como um dos oito parâmetros a serem avaliados para se julgar a qualidade no atendimento hospitalar, o que reforça a importância do tema e a necessidade de melhoria da abordagem por parte dos profissionais de saúde.(16)
Em levantamento da OMS realizado nos dez países desenvolvidos que mais consomem opióides – principalmente a morfina – verificou-se, a partir de registros consistentes, que estes foram utilizados em até 90% das vezes para alívio da dor causada por doença não-neoplásica e que houve aumento significativo do consumo no período de 1976 a 1992, mostrando variação desse incremento de 198% a 3.318% por país. Esse fenômeno aconteceu porque os estudos desenvolvidos na área de dor têm demonstrado que todo quadro de dor, se não for prevenido quando possível, ou tratado precocemente, pode levar ao aumento significativo da morbidade e mortalidade dos pacientes em todas as especialidades pesquisadas.(17)
As principais conseqüências da dor são: modificações do comportamento, o que gera ansiedade, angústia e depressão; hipertensão e taquicardia, com a elevação do risco de eventos nos pacientes cardiopatas; complicações respiratórias, em especial, nas patologias toracoabdominais; e incapacitação osteomioarticular progressiva.(18)
O desafio é fazer com que o controle da dor faça parte prioritária dos cuidados oferecidos à totalidade dos pacientes em todos os níveis de atenção, não só por especialistas, mas, principalmente, por clínicos, cirurgiões e médicos de família. O treinamento específico para atuar de forma segura e efetiva, tanto na prevenção como no tratamento da dor, poderá evitar o sofrimento de muitos pacientes, os quais, às vezes, por falta de medidas profiláticas de baixo custo, desenvolvem dor crônica com intensa morbidade, o que piora a qualidade de vida e acarreta elevado custo para o sistema de saúde.(19)
Melhorar a qualidade dos serviços na área de saúde envolve entender o caráter subjetivo da dor, como uma experiência ampla que abrange mecanismos fisiológicos, psicológicos e comportamentais, dependente das características de cada indivíduo.(20)
Dessa forma urge a mudança da filosofia de atendimento – hoje focado exclusivamente nas medidas de controle da doença (etiológicas: modelo biomédico) – para uma visão baseada no cuidado integral ao paciente, com a instituição de uma abordagem em que haja preocupação com a integridade física e mental durante o processo no qual a ação médica se desenvolverá (modelo biopsicossocial). O estudo e o controle da dor podem ajudar nessa mudança de atitude, indispensável para se atingir os padrões de qualidade exigidos para a boa prática médica.(21)
PROGRESSOS NA TEORIA DA DOR
Melzack, em Gate-Control Theory of Pain, defende que os processos psicológicos influenciam na percepção da dor, ao agirem no mecanismo de comporta espinhal, pelo que “algumas dessas atividades psicológicas devem abrir a comporta e outras fecham”.(22) Essa teoria refere-se ao sistema nervoso central (SNC) apenas como modulador, não abrangendo as mudanças, a longo prazo, que podem ocorrer no SNC em resposta ao estímulo nociceptivo.
Estudos fisiológicos e comportamentais mostraram que a neuroplasticidade (capacidade neuronal de gerar mudanças na condução de estímulos) desempenha papel fundamental no processo doloroso, na transmissão, na modulação, na memória e na correlação com outras funções, além de que isso ocorre nas vias centrais e periféricas nos estados de dor persistente.(23)
Algumas situações clínicas de pacientes com dor deixam claro que o encéfalo tem a faculdade de gerar dor na ausência de impulsos periféricos dos nociceptores ou da medula espinhal, como por exemplo a dor do membro fantasma e a fibromialgia.(24)
A existência de vários tipos de dor é possível de ser compreendida como variabilidade individual na identificação da nocicepção, da percepção dolorosa, do sofrimento e do comportamento doloroso.(25) Portanto, respostas afetivas e emocionais podem estar junto às características sensoriais do estímulo, ao passo que aspectos psicológicos e sensoriais da dor estão interligados através de vias nervosas.(26)
A via espinotalâmica, já bem estabelecida, cumpre importante papel no aspecto sensorial e discriminativo da dor, pois as informações ascendem via tálamo para o córtex sensorial primário, porém só uma proporção de fibras dos neurônios do corno posterior da medula (lâmina I) ascende por ela;(27) a outra segue a via trato espinoparabraquial para o tronco cerebral; esses neurônios têm papel na integração do processo nociceptivo sensorial e visceral, na regulação autonômica e homeostática, o que pode gerar reações afetivo-emocionais (medo e agressividade), motivacional-comportamental (fuga e imobilidade) e neuroendócrinas autonômicas (hipertensão e taquicardia). As principais conexões desses neurônios são com o núcleo central da amígdala e do hipotálamo ventromedial, enquanto outras áreas de projeções desses neurônios regulam sistemas implicados no sono, humor, ansiedade e controle sensorial.(28)
As projeções desse trato na amígdala contribuem para um componente antagônico das emoções (medo e ansiedade) e no hipotálamo com alça da área periaquedutal cinzenta, podem estar envolvidas na produção de comportamento adverso (fúria e agressividade). Dessa forma, parece que essas áreas têm papel crítico nos aspectos emocionais e comportamentais da resposta à dor, bem como no controle dos aspectos sensoriais. Alterações nos neurônios desse trato têm sido descritas após inflamação, sugerindo que há adaptabilidade desses núcleos em resposta a alterações periféricas.(26)
No corno posterior da medula (lâmina I), onde são recebidos os estímulos periféricos de dor, dois mecanismos são de suma importância para promover o prolongamento da sensação dolorosa:
1. Wind up - produz potencialização e facilitação da capacidade neuronal de condução do estímulo nociceptivo periférico de fibras – C,
2. Sensibilização central - que ocorre pela intensificação e prolongamento do estímulo doloroso, produz mudanças na excitabilidade neuronal, como a redução do limiar de dor, e decorre de alterações estruturais na membrana neuronal e sinalização intracelular, resultando em hiperatividade neuronal; pode se associar à perda da capacidade inibitória de interneurônios medulares e, a depender da extensão do dano nas fibras nervosas periféricas, à excitotocixidade (disfunção e morte celular dos interneurônios inibitórios).
Tais processos são dependentes da ativação de receptores de N-metil-d-aspartato (NMDA), que são acionados pela liberação de glutamato nas terminações nervosas em resposta ao estímulo nociceptivo; a utilização de antagonistas pode prevenir esse quadro.(8) Esses mecanismos são responsáveis pela hiperalgia e alodinia, que se observa nos casos de dor prolongada, sintoma pouco entendido pelos médicos, principalmente nos pacientes em que a queixa de dor é muito superior ao substrato anatômico encontrado, chamada de “dor fora de proporção”.(11)
Tem-se o costume de considerar a dor como puro fenômeno perceptivo, ignorando-se o fato de que a injúria nociceptiva rompe o sistema homeostático corporal e produz estresse; quando o papel do processo de dor no estresse sistêmico é levado em conta, pela existência de vias comuns autonômicas, inicia-se um complexo programa de restauração da homeostase e essa relação pode produzir a explicação para quadros de dor ligados ao estresse crônico.(29)
Vários autores criticam a inutilidade da divisão da dor em aguda e crônica, por inferirem que esse processo é dinâmico e contínuo; em algum momento, na pessoa suscetível, é capaz de induzir rápidas mudanças neuronais (plasticidade), resultando em processamento alterado da nocicepção, (“sensação desagradável”), que pode ser o responsável pela persistência da dor em alguns casos.(30)
Melzack, no esboço de uma nova teoria, define “neuromatrix” e “neurosignature” para explicar o mecanismo da dor, coloca o funcionamento do SNC como consistindo em ampla rede de neurônios com alças que interligam córtex-tálamo e córtex-sistema límbico, definindo os centros superiores encefálicos como os principais envolvidos no comportamento dos quadros de dor,(29) o que muda completamente o referencial em relação à teoria anterior.
No contexto atual do desenvolvimento da ciência, o funcionamento psicofísico não pode ser considerado de maneira dicotomizada. O fenômeno humano que é a dor reside na existência de uma composição em que a transmissão neuronal implica representação mental imediata, demonstrada por ativação de áreas específicas do SNC, incluindo do córtex; desta forma, o acúmulo de experiências (memória) faz com que o indivíduo tenha à disposição uma gama de recursos que permitem a solução de problemas de forma muito peculiar, em cada momento de desenvolvimento da vida.(31)
Os avanços na fisiopatologia demonstram que a integração do estímulo nociceptivo com processos psicológicos e autonômicos é profunda e complexa.(20) O prolongamento do estímulo doloroso suscita também respostas de amplo espectro e em vários níveis, a persistência da dor pode gerar alterações psicoafetivas, e por compartilhar as mesmas vias, essas alterações podem ser o gatilho, que tornam o processo doloroso, algumas vezes, de difícil controle.(26) Portanto, a teoria moderna da dor reforça, mais do que nunca, que o modelo epidemiológico de atenção à saúde deve ser empregado para seu controle: prevenção, detecção precoce, tratamento efetivo e recuperação, que precisam ser colocados nessa ordem de prioridades.(32)
PROGRESSOS NA ABORDAGEM GERAL DA DOR
Nova abordagem
Os avanços no estudo da dor permitiram entender o quadro de muitos pacientes antes considerados de difícil tratamento ou mesmo intratáveis, pela intensidade e persistência das queixas. Dessa forma, há concordância entre os autores de que o principal progresso a ser obtido deve ser a mudança no comportamento dos profissionais de saúde, para introduzir, na prática, esses novos conceitos.(2)
O controle da dor precisa ser uma meta geral da abordagem médica; por conseguinte, urge que sejam feitas intervenções seguindo um algoritmo racional, em que o modelo epidemiológico seja utilizado para indicar prioridades e que a filosofia do trabalho seja fundamentada na teoria da qualidade.(33)
O primeiro passo, por exemplo, é acreditar na queixa do paciente (cliente), de que a dor é real (problema). O médico foi procurado para resolvê-la com a melhor solução (efetividade e eficácia), com o menor custo e com a maior satisfação. Assim, para se obter êxito (resultado), é necessário o “planejamento do tratamento” com base nas melhores evidências (visão epidemiológica de prioridades nas ações), no reconhecimento do plano e na aprovação do paciente (aceitabilidade), com reavaliações freqüentes do tratamento (reavaliar e, se necessário, refazer planos e metas de acordo com o caso, porém com prazos determinados para os desfechos – “tempo real”).
Para se chegar ao efeito esperado (resultado = cura ou controle da dor) é preciso estar atento e cuidar do paciente mesmo nos intervalos entre as consultas (controle do processo), pois é indispensável que se tenha certeza da qualidade dos exames, de que o tratamento está sendo empregado, da qualidade dos medicamentos e da acreditação dos outros profissionais envolvidos.
Peculiaridades no planejamento
Problemas freqüentes já detectados, que devem ser solucionados de forma compreensiva:
1. Considerar a dor “psicogênica” – é importante lembrar que este é um termo inadequado para definir dor ilusória ou factícia, o que é quadro incomum,(19) uma vez que, como foi visto, a dor sempre envolve centros encefálicos. É imprescindível que se adote, como conduta padrão, o acreditar na queixa e a utilização dos meios para o rápido controle da dor;
2. Utilizar placebo para analgesia, em especial nos pacientes ansiosos e com alta demanda de cuidados. Marques alerta que o médico não está autorizado, ética e cientificamente, a não ser em estudos controlados e aprovados por comitês de ética, a utilizar placebo quando existir tratamento comprovadamente efetivo – parágrafo 29 da declaração de Helsinque, ratificado, em outubro de 2000, na 52ª reunião da Associação Médica Mundial;(34)
3. Uso de meperidina – as características farmacocinéticas (meia-vida curta e acúmulo de metabólitos tóxicos para SNC-normeperidina), farmacodinâmicas (excitação e estimulação autonômica – taquicardia), taquifilaxia e rápida indução de dependência, podem reduzir drasticamente as chances de êxito no tratamento da dor, como por exemplo impossibilitar cirurgias nos dependentes; esse foi o motivo pelo qual se desencorajou o uso em alguns países desenvolvidos e retirada do arsenal terapêutico;(35)
4. Uso de solução analgésica endovenosa (EV) – a mistura de várias drogas pode levar à subdosagem, à inativação e à redução da biodisponibilidade; características farmacocinéticas distintas em uma mesma solução impossibilitam a titulação da dose, reduzindo a eficiência;
5. Analgesia com dose fixa e S.O.S - como o objetivo é o controle da dor, torna-se importante que o processo e o método de analgesia utilizados sejam flexíveis o bastante para proporcionar o efeito desejado em tempo real. Isto significa que o paciente deve receber analgésicos de acordo com a necessidade estabelecida pela sua demanda (queixa de dor) e não pelos horários padronizados previamente;(1)
6. Suspensão da analgesia por ausência de dor – a analgesia deve ser suspensa quando houver sinais claros de restabelecimento orgânico. Muitos pacientes utilizam esquemas analgésicos eficientes e, quando são suspensos, apresentam piora significativa da dor. Deve-se tentar sempre a retirada gradual da medicação;
7. Usar medicação adjuvante como analgésico – é comum o emprego de antidepressivos, de anticonvulsivantes, de neurolépticos e, até, de benzodiazepínicos para controle da dor. Essas drogas, quando usadas, devem ser associadas a analgésicos tradicionais, pois o seu efeito se dá pela modificação da neurotransmissão (processo demorado) ou por lentificação do potencial de ação, que raramente detém o estímulo nociceptivo.(36)
Os profissionais de saúde insistem em subestimar a dor quando comparada ao nível das queixas do paciente,(37) daí subtratá-la.(38) Subentendem que é uma experiência individual e, como tal, influenciada por experiências prévias, pela cultura, pelo prognóstico, pelas estratégias de vida, bem como por medo e ansiedade. Constatou-se que a incidência de dor ocorre por medo de efeitos colaterais, dependência, erro de dose e intervalo, falta de avaliação da variabilidade biológica e dificuldades do paciente em comunicar as suas necessidades analgésicas; dificuldades atribuídas ao ensino insuficiente do tratamento da dor para estudantes e médicos.(39)
Mensuração da dor e emprego da escada analgésica
Na avaliação deve constar o impacto da dor sobre a qualidade de vida do paciente e o que este espera com as intervenções médicas. O uso de escores para avaliação global durante o tratamento pode ajudar na avaliação da resposta; os mais usados são a escala de Karnofsky e perfomance status da OMS.(9) A mensuração da dor (5º sinal vital) é importante para que o ajuste das medicações seja feito com objetividade. Existem várias escalas, porém a mais usada é a escala visual-analógica (EVA = 0 cm, paciente sem dor; EVA = 10 cm, dor insuportável; de 1 a 9 cm, as intensidades intermediárias: leve, moderada e intensa).(1)
O controle da dor deve ser iniciado de imediato, em conjunto com as medidas propedêuticas, visando identificar a causa da dor; aplicando-se a escada analgésica da OMS(18) com três degraus (passos): no 1º, usa-se analgésico simples (dipirona 1 g, VO ou EV, de 4/4 h ou paracetamol 500 mg VO 4/4 h) + (antiinflamatório não-hormonal-AINH); no 2º, o analgésico simples + AINH + opióides fracos até a dose máxima (codeína 30 a 60 mg ou tramadol 50 a 100 mg, a cada 4 h); se ainda não houver controle da dor, segue-se para o 3º, com analgésicos simples + AINH + opióides fortes (substituem os fracos). A primeira escolha deve ser a morfina, cuja dose deve ser titulada 2 mg EV a cada dez minutos até o controle da dor.
Após esse teste, em geral usa-se a dose, para adultos, de 4 a 10 mg EV, que é fixada a cada 4/4 h; se houver necessidade, converter a dose efetiva para VO (dose VO = dose EV x 3) a cada 4 h. Pode-se iniciar com morfina VO, porém a titulação da dose é mais demorada, caso em que se começa com 10 mg VO 4/4 h e 10 mg SOS até de 1/1 h; ao final das 24 h soma-se a dose total e divide-se em seis doses diárias (4/4 h). Para exemplificar, tem-se um consumo que, em 24 h, foi de 120 mg; logo, a dose no dia subseqüente vai ser de 20 mg de 4/4 h. A efetividade deste esquema no controle da dor relacionada ao câncer é de 85% a 90% na maioria das publicações.(35)
A piora da doença ou a tolerância podem fazer com que seja necessário o aumento das doses com o passar do tempo, para se manter o controle efetivo. Os antiinflamatórios não-hormonais preferenciais são aqueles com menor potencial de produzir efeitos colaterais, como inibidores seletivos da cicloxigenase-2.(40) Pacientes de risco devem receber medicação para proteção da mucosa gástrica. É possível associar drogas adjuvantes nos degraus 2 e 3, cujas principais opções são os antidepressivos tricíclicos (amitriptilina 25 mg/dia) ou anticonvulsivantes (carbamazepina 200 mg três vezes ao dia), que agem principalmente na modulação da dor. Registre-se que outros agentes adjuvantes não foram superiores a esses.(41)
A limitação da escada tem lugar pelo aparecimento de efeitos colaterais à morfina, em particular nos idosos e naqueles com estado geral muito comprometido. Os principais efeitos colaterais são: 1 - náuseas e vômitos, que podem ser controlados com uso da terapia antivômito total: antagonista do receptor 5-HT3 (ondansetrona 4 a 8 mg ou tropisetrona 2 mg) + droperidol 1,25 mg ou haloperidol 1 mg + decadron 4 a 8 mg + metoclopramida 10 mg, que deve ser utilizada nos pacientes de risco, como medida profilática, antes do opióide;(42) 2 - a constipação intestinal necessita ser prevenida com uso de dieta e laxativos, ou seja, deve-se tentar contornar os efeitos indesejáveis para manter o esquema. Várias estratégias foram descritas para facilitar o manejo dos opióides.(18,35) Outros opióides estão disponíveis no Brasil sob várias formulações, como metadona, oxicodona e fentanil, porém apenas devem ser usados na absoluta impossibilidade da morfina.(43) Os pacientes com quadros de dor persistente ou difícil controle devem ser avaliados e se necessário acompanhados por especialistas.
CONCLUSÃO
Todo o empenho é necessário para que as condutas sejam otimizadas em relação à fase do tratamento e à evolução de cada caso. Um dos pilares desse processo é a abordagem multidisciplinar, em que todos os envolvidos precisam saber os passos a serem dados, para que se possa impor efetividade à resolução dos problemas.
A analgesia compõe um grupo decisivo de cuidados com o paciente que deve unir os esforços da equipe no sentido de se obter o melhor resultado e satisfação com o tratamento empregado. Pode servir também como modelo de integração e de sofisticação dos cuidados.
Temos que cruzar uma nova fronteira na medicina, em que a equipe se responsabilize pela elaboração e aplicação do melhor cuidado oferecido durante o tratamento. Assim, as novas metas de qualidade devem ser debatidas e incluídas rapidamente às rotinas.
O principal debate que se faz hoje é sobre o papel da medicina na sociedade, em que há tantos avanços e tão pouca qualidade. O paradigma atual é o da qualidade e a questão que se coloca é como aplicar mais qualidade à medicina que praticamos.
Em nosso modo de ver, é possível melhorar a qualidade em qualquer cenário, desde que se empreguem os conhecimentos de Epidemiologia para definir os focos de atuação – os problemas mais freqüentes – e a filosofia da qualidade total para melhorar os resultados. As condições para que essa mudança se realize resumem-se na dedicação da equipe de saúde ao cuidado integral ao paciente, na responsabilidade de produzir o melhor resultado com a intervenção e no zelo com sua integridade física e mental durante o tratamento.
Dr. José Ribamar Moreno
Responsável pela Clínica de Dor do Hospital Mário Lioni de Duque de Caxias - RJ.
Mestre em Clínica Médica-Reumatologia pela UFRJ.
Anestesiologista com Título de Atuação em Dor - SBA/AMB e Membro da SBED.