http://www.scientificcircle.com/pt/30889/disautonomia-conceito-emergente-sindrome-fibromialgia/Disautonomia: um conceito emergente na síndrome da fibromialgia
Dysautonomia: an emerging concept in fibromyalgia syndrome
Luiza Cristina Lacerda JacominiI; Nilzio Antonio da SilvaII
IProfessora-assistente de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás (ICB/UFG) e Doutoranda do Curso de Pós Graduação em Ciências da Saúde da UFG
IIProfessor titular de Reumatologia da Faculdade de Medicina da UFG
Endereço de correspondência
RESUMO
A síndrome da fibromialgia (SFM) é uma condição de dor crônica, generalizada e de difícil tratamento, com importante prevalência na população geral. A fibromialgia é mais do que um estado de dor musculoesquelética crônica, porque a maioria desses pacientes também experimenta fadiga, distúrbios de sono, dor visceral, intolerância a exercícios e sintomas neurológicos. É uma síndrome caracterizada mais por sintomas, sofrimento e incapacidades do que por alterações orgânicas estruturais demonstráveis, podendo fazer parte do grupo de síndromes funcionais. Muitas tentativas para elucidar a patogenia orgânica da SFM, como pesquisas em genética, aminas biogênicas, neurotransmissores, hormônios do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, estresse oxidativo, mecanismos de modulação da dor, sensibilização central e função autonômica na SFM, revelam várias anormalidades, indicando que múltiplos fatores e mecanismos podem estar envolvidos na patogênese dessa síndrome. A disautonomia pode ter um importante papel na fisiopatologia da SFM, embora não esteja claro se é causa ou efeito ou um componente deste mosaico. Pesquisas futuras devem ser encorajadas no sentido de se avaliar o papel do sistema nervoso autônomo ou sua disfunção na complexa fisiopatologia da SFM e a eficácia de intervenções terapêuticas por meio de ensaios controlados e randomizados. O desenvolvimento de terapias efetivas para a fibromialgia tem sido retardado pela falta de entendimento dos mecanismos fundamentais da etiologia da síndrome. Uma boa compreensão dos mecanismos é a base para o desenvolvimento e a comprovação de condutas terapêuticas adequadas. Esta revisão descreve os mais recentes artigos da literatura que demonstram haver uma desregulação no sistema nervoso autônomo na SFM e discute a disautonomia como um potencial mecanismo participante na gênese e manutenção da sintomatologia e comorbidades da SFM.
Palavras-chave: fibromialgia, sistema nervoso autônomo, fisiopatologia, doenças reumáticas, receptor adrenérgico, disautonomia.
ABSTRACT
Fibromyalgia (FM) is a chronic, widespread pain condition that has important prevalence in general population. Despite the musculoskeletal pain, the majority of people with fibromyalgia also experience fatigue, sleep disorders, visceral pain, exercise intolerance and neurological symptoms. This syndrome is considered a functional syndrome because it is better characterized by its symptoms, suffering and disability rather than well seen organic structure impairment. A substantial literature has been produced in order to explain the pathophysiology of fibromyalgia: researches on genetics, biogenic amines, neurotransmitters, hypothalamic-pituitary-adrenal axis hormones, oxidative stress, mechanisms of pain modulation, central sensitization and autonomic function in FM revealed various abnormalities indicating that multiple factors and mechanisms may be involved in the pathogenesis of FM. Dysautonomia may have a main role at FM pathophysiology, even though it is not clear if cause, consequence or a component of this mosaic syndrome. Future research must be encouraged in order to evaluate the real role of autonomic nervous system or its impaired function in the complex pathophysiology of the syndrome and in order to assess efficacy of therapeutics interventions through well designed assays. The development of effective therapeutics measures has been delayed due to lack of knowledge of the main mechanisms in the pathogenesis of FM. A thorough understanding of mechanisms will be required to develop and document convenient therapies. This review aims to describe the most recent articles that document autonomic system impairment in SFM and to discuss dysautonomia as a potential mechanism that plays a role in the symptoms genesis, symptoms maintenance and comorbidity in SFM.
Keywords: fibromyalgia, autonomic nervous system, pathophysiology, rheumatic disease, adrenergic receptor, dystautonomia.
INTRODUÇÃO
A noção de que o sistema nervoso simpático coordena as funções corporais se originou, provavelmente, com Galeno, um médico grego do século II. De acordo com seu pensamento, os nervos seriam tubos ocos que distribuíam vigor para o corpo, fomentando ações coordenadas, ou "simpatia" para os órgãos. Em fins do século XIX, o termo sistema nervoso autônomo (SNA) foi cunhado por Langley para designar a porção do sistema nervoso responsável pelo controle involuntário e inconsciente das funções dos órgãos internos, em contraste com a porção voluntária e consciente das funções externamente percebidas dos músculos esqueléticos(1). Nessa época, introduziu-se o termo sistema nervoso parassimpático para designar a porção craniossacral do SNA em contraste com o sistema nervoso simpático que se origina dos gânglios toracolombares. Só mais tarde, na década de 1920, é que Canon considerou os nervos simpáticos e a medula da adrenal como uma unidade funcional – o sistema simpatoadrenal.
Hoje se acredita que o sistema nervoso autônomo é o efetor de um sistema homeostático maior, cujos "painéis de controle" ficam situados em vários núcleos do tronco encefálico, do hipotálamo e do prosencéfalo basal e são supridos de sinais contínuos de todas as partes do organismo. Hoje também se reconhece que os pontos de ajuste homeostático podem sofrer mudanças ao longo da vida e até mesmo ser parcialmente influenciados pelo contexto em que os mecanismos sensitivos atuam(2).
As terminações nervosas do SNA têm como alvo fibras musculares (lisas na maioria, estriadas no coração) e células glandulares e coordenam as funções de diferentes órgãos e sistemas do corpo. Tanto a divisão simpática como a parassimpática apresentam uma sinapse entre o neurônio central e o alvo periférico: a sinapse ganglionar. O neurotransmissor da sinapse ganglionar é geralmente a acetilcolina nas duas divisões, mas, no alvo, a divisão simpática libera geralmente a noradrenalina, enquanto a parassimpática, acetilcolina(3). O sistema caracteriza-se pela intensidade e rapidez de instalação e dissipação de suas ações, provendo ao organismo uma adaptação dinâmica, momento a momento, às alterações do ambiente interno e/ou externo do organismo.
O termo disautonomia refere-se a uma condição na qual a função autonômica alterada afeta adversamente a saúde. As condições em que a função autonômica está alterada podem variar desde episódios transitórios em pessoas saudáveis a doenças neurovegetativas progressivas; de condições nas quais a função autonômica alterada tem um papel fisiopatológico primário a outras nas quais a função alterada piora um estado patológico independente; e de mecanismos claros a entidades controversas e misteriosas (1).
Disfunções autonômicas primárias são insuficiências autonômicas puras ou causadas por desordens neurodegenerativas (por exemplo, doença de Parkinson, atrofia múltipla de sistemas), enquanto as formas secundárias acompanham doenças como diabetes mellitus, amiloidose, alcoolismo, doenças auto-imunes, uremia, tumores, doenças metabólicas (porfiria), infecções, lesões do sistema nervoso central, trauma, entre outras. Neuropatia autonômica periférica ou alterações centrais afetam o SNA de forma geral ou podem ser órgão-específicas. Vista deste ângulo, a síndrome da dor complexa regional (CRPS) seria dependente de alterações locais do sistema simpático e fibras nervosas sensoriais ou de alterações centrais. Há dois aspectos clínicos para a disfunção autonômica: o da neuropatia autonômica ou hiper-reflexia do SNA e o das alterações locais que causam problemas neurológicos, tróficos e dor(4).
A maioria das disfunções autonômicas crônicas ocorre como conseqüência de processos de doença (por exemplo, diabetes, amiloidose ou mieloma múltiplo), agentes tóxicos (por exemplo, álcool) ou medicamentos (por exemplo, antidepressivos, antipsicóticos, anti-hipertensivos ou drogas antineoplásicas). Algumas vezes, a disfunção autonômica domina a apresentação clínica e não tem causa clara, o que se denomina disfunção autonômica crônica primária(1).
A partir da década de 1960, quando se observou, pela primeira vez, neuropatia autonômica em pacientes com artrite reumatóide, é que se buscou avaliar a função autonômica, por meio de testes padronizados, em outras doenças do tecido conjuntivo. Essa disfunção foi confirmada em pacientes com diversas doenças reumáticas(5,6), como lúpus eritematoso sistêmico (LES)(7), artrite reumatóide (AR)(8) e SFM(9). A existência da neuropatia autonômica pode ser um fator complicador importante na doença reumatóide, pois pode aumentar sua morbidade e mortalidade(4).
Os seguintes aspectos fisiopatológicos foram propostos para explicar a disfunção autonômica presente em pacientes com doença reumática: alterações estruturais das fibras autonômicas, auto-anticorpos para receptores relevantes para o funcionamento do sistema nervoso autônomo, alterações funcionais em razão de carga pró-inflamatória e aberrações no hipotálamo e eixo nervoso ou em virtude da inibição de liberação de neurotransmissores periféricos por citocinas (ex.: noradrenalina), alterações do barorreflexo causadas por lesões ateroscleróticas, hiperatividade simpática nas doenças reumáticas, desequilíbrio entre tônus autonômico e sistema nervoso sensorial, lesões de centros reguladores autonômicos centrais ou alterações induzidas por drogas na função autonômica (glicocorticóide e outros)(4).
Sobre as alterações induzidas por drogas na função autonômica, destaca-se que num estudo em que se demonstrou que 47% dos pacientes com artrite reumatóide (AR) e 19% daqueles com lúpus eritematoso sistêmico tinham sintomas sugestivos de disfunção autonômica, os pesquisadores não encontraram nenhuma correlação entre a disfunção e o uso de glicocorticóides, usados por 95% dos doentes com lúpus e 26% dos doentes com artrite(5). Previamente, havia sido demonstrado que disfunção autonômica, medida pela diminuição da variabilidade da freqüência cardíaca, em pacientes com LES, era independente do uso de glicocorticóides(10).
O fenômeno auto-imune ou alterações inflamatórias dos nervos poderia(m) ser uma causa para as alterações autonômicas estruturais. Os pacientes com LES, com inflamação sistêmica aumentada, têm um eixo hipotálamo-sistema nervoso autônomo ativado, e tal ativação pode ser medida pelo teste do reflexo pupilar à luz. A taxa de prevalência de disautonomia, testada por meio do reflexo pupilar, é de um terço em pacientes portadores de LES. A hiper-reflexia observada se relaciona à inflamação sistêmica, uma vez que há aumento e decréscimo paralelo entre o tempo de latência do reflexo pupilar e a velocidade de hemossedimentação nesses pacientes(11).
Em alguns pacientes, a neuropatia autonômica poderia estar associada com a presença de auto-anticorpos contra o tecido neuronal. Tal afirmativa, porém, permanece no campo das hipóteses, pois segundo nosso conhecimento, estudos histopatológicos das fibras autonômicas não foram realizados em pacientes com doença reumática.
Substâncias pró-inflamatórias (interleucina-6, interferon g, TNF-a) podem ser importantes estimulos para induzir hiper-reflexia autonômica. Injeções de IL-6, intravenosas, em pacientes com SFM, desencadearam alterações autonômicas(12). Pode-se especular se o coquetel de citocinas circulantes poderia induzir formas diferentes ou órgão-específicas de alteração da função autonômica. Uma questão intrigante seria o impasse: a hiper-reflexia autonômica é uma resposta para o feedback do processo inflamatório crônico periférico (ex.: via citocinas agindo no hipotálamo) ou a conseqüência de fatores patogênicos que se originam no sistema nervoso central e aumentam a atividade da doença? Estaria o sistema nervoso central envolvido na progressão da doença reumática?(4).
Não há estudos longitudinais a respeito da função de nervos autonômicos em pacientes com doença reumática. Estudos em pacientes com diabetes mostram que disfunção autonômica cardiovascular está ligada ao aumento do risco de parada cardíaca e mortalidade. Estudos semelhantes, nas doenças reumáticas, são necessários para melhorar o cuidado clínico para os pacientes que têm disfunção autonômica. Ensaios clínicos randomizados, controlados em pacientes com doença reumática, são escassos, provavelmente pela falta de demonstração do valor prognóstico desfavorável da disfunção autonômica nesses pacientes(4).
Essa revisão discute a disautonomia como um potencial mecanismo participante na gênese e manutenção da sintomatologia e comorbidades da SFM.
SÍNDROME DA FIBROMALGIA E DISAUTONOMIA
Nos últimos 15 a 20 anos, a síndrome da fibromialgia (SFM) transformou-se de uma vaga desordem em um diagnóstico aceito e reconhecido pela Organização Mundial da Saúde(13). A SFM é uma condição reumatológica crônica e complexa que não possui um marcador biológico definitivo, com apresentação variável de pessoa para pessoa(14).
A síndrome afeta de 6% a 20% dos pacientes das clínicas reumatológicas, quase 10% dos casos em consultas de dor crônica e entre 0,5% e 5% da população geral(15,16). No Brasil, um estudo epidemiológico sobre doenças reumáticas, realizado na cidade de Montes Claros, mostrou que a síndrome da fibromialgia foi a segunda desordem reumatológica mais freqüente, com prevalência de 2,5% na população geral(17,18).
Muitas tentativas têm sido feitas para elucidar uma patogenia "orgânica" para a fibromialgia. Pesquisas em genética, aminas biogênicas, neurotransmissores, hormônios do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, estresse oxidativo, mecanismos de modulação da dor, sensibilização central e função autonômica na síndrome da fibromialgia revelam várias anormalidades, indicando que múltiplos fatores e mecanismos estão envolvidos na patogênese dessa síndrome(19).
O envolvimento do SNA na SFM foi primeiramente descrito, em 1988, por Bengtsson e Bengtsson(20), que relataram melhora na dor no repouso e no número de tender points, em resposta ao bloqueio do gânglio estrelado com bupivacaína. A eficiência do bloqueio do gânglio estrelado foi avaliada pela medida do fluxo sangüíneo, da temperatura e das respostas de condutância da pele (reflexo simpatogalvânico). Os resultados deste ensaio controlado indicam que o completo bloqueio simpático produz melhora dos sintomas, provavelmente por melhora na microcirculação. Os autores sugeriram que uma atividade aberrante de nervos simpáticos, em alguns pacientes, poderia ser um mecanismo possível na patogênese da SFM(20). Considerando que a fadiga muscular possa ser o sintoma mais incapacitante da SFM, Backman et al.(21) estudaram a função muscular esquelética de pacientes com SFM, medindo a força máxima de preensão voluntária e outras características da contração de músculos adutores da extremidade do membro superior, após estimulação elétrica do nervo ulnar, após bloqueio local do antebraço com infusão intravenosa de guanetidina. Esses autores verificaram, entre os pacientes, diminuição da força de preensão e menor taxa de relaxamento muscular, que aumentaram durante o bloqueio simpático. A partir desses resultados, eles sugeriram que a disfunção muscular poderia ter causas tanto central quanto periféricas e que a atividade aumentada do sistema simpático muscular seria um provável elo na cadeia de eventos que levaria aos sintomas musculares da SFM. Confirmando esses estudos iniciais, Vaeroy et al.(22) sugeriram também um decréscimo na resposta simpática de pacientes com SFM, quando submetidos a testes auditivos e de temperatura (cold pressor test - 4 a 10 ºC). Esses últimos autores avaliaram a resposta vasoconstritora da pele dos portadores da síndrome em comparação com indivíduos saudáveis.
Durante a última década, alguns pesquisadores têm demonstrado que pacientes com SFM exibem um sistema nervoso autônomo alterado. A disautonomia parece ter um papel importante na fisiopatologia da SFM, embora não esteja claro se essa anormalidade seja a causa ou o efeito. A disfunção autonômica é freqüente na SFM e poderia explicar os seus sintomas que envolvem múltiplos sistemas(23).
Um grande impulso na avaliação da função autonômica surgiu com a análise da variabilidade da freqüência cardíaca (VFC) através do sistema holter. Essa técnica baseia-se no fato de que o ritmo cardíaco oscila constantemente e que tal variação é modulada por impulsos dos ramos simpáticos e parassimpático do sistema nervoso autônomo. A análise espectral de tal variabilidade oferece uma medida do influxo desses dois ramos para o nodo sinusal. Trata-se de um método não invasivo, simples, que quantifica a atividade autonômica(24). O braço parassimpático provoca diminuição da freqüência cardíaca e aumento da VFC, enquanto o simpático aumenta a freqüência cardíaca e diminui a VFC(25). Até então, na prática clínica e na pesquisa, a função autonômica era estimada por variação da freqüência cardíaca à respiração profunda, à manobra de Valsalva, ao ortostatismo e à preensão sustentada. Outros métodos usados para avaliar a função do SNA incluem a medida da condutância elétrica da pele, que reflete a estimulação das glândulas sudoríparas, e a medida da microcirculação cutânea (laser Doppler)(24).
Martinez-Lavin et al. avaliaram o balanço simpático-parassimpático, por meio da análise espectral da variabilidade da freqüência cardíaca (VFC), em um grupo de 19 mulheres com SFM, pareadas por idade com 19 controles, quando submetidas a estresse ortostático. Os resultados indicaram resposta alterada das pacientes em relação aos controles(26).
Este mesmo grupo de pesquisadores, usando a técnica VFC, determinou a variação circadiana do ritmo cardíaco em pacientes com SFM. Seus resultados mostraram perda da variação circadiana do balanço simpato/vagal, com os valores noturnos mais elevados que dos controles pareados por sexo e idade. Esses resultados são consistentes com uma exagerada modulação simpática noturna do nodo sinusal e poderiam explicar os distúrbios de sono e a fadiga que ocorre na SFM(24). Ao associar seus resultados aos daqueles que encontraram resposta simpática diminuída a diversos tipos de agentes estressores, como ortostatismo(26), teste da mesa inclinada(27), teste de imersão em baixa temperatura e estimulação acústica(22), Martinez-Lavin et al. caracterizaram a disautonomia presente na SFM como hiperatividade simpática com falta de resposta adicional ao estresse(24).
Os resultados de Friederich et al.(28), que estudaram variabilidade da freqüência cardíaca em 28 pacientes com SFM em comparação com 15 mulheres saudáveis, submetidas a estresse mental e ortostatismo passivo, mostraram que tanto no ortostatismo como sob estresse mental, as pacientes com SFM exibiram reduzida ativação do sistema nervoso simpático, confirmando a hipótese de hiporreatividade do sistema do estresse tanto à estimulação mediada centralmente (estresse mental) como à estimulação mediada perifericamente (ortostatismo).
A hipótese de disautonomia, baseada em testes que demonstram hiperatividade simpática noturna em pacientes com SFM, é confirmada por um grupo de pesquisadores da Turquia(29), que acrescenta ainda que seus resultados, obtidos da realização de testes de resposta simpática da pele e análise da variabilidade do intervalo R_R (ritmo cardíaco), indicam que a disfunção autonômica é tanto simpática quanto parassimpática. Esse mesmo grupo investigou, também, alterações da função autonômica, registrando respostas simpáticas da pele das regiões palmar, plantar e genital de mulheres com SFM. Tal estudo também revelou anormalidades do SNA das pacientes(30).
Raj et al.(31) submeteram 17 mulheres com SFM e 14 mulheres sadias ao teste da mesa inclinada (uma forma de estresse passivo de ortostatismo) e também examinaram o balanço simpatovagal por meio do estudo da variabilidade de freqüência cardíaca (VFC) por um período de 24 horas. O teste da mesa inclinada (tilt test) foi positivo para 64,7% das fibromiálgicas em comparação com 21,3% dos controles. As pacientes com SFM tiveram menor variabilidade do ritmo cardíaco que os controles, demonstrando que essas pacientes tiveram respostas anormais a dois testes de função do sistema nervoso autônomo.
Furlan et al.(32) testaram a hipótese de que a SFM é caracterizada por hiperatividade simpática e alterações na resposta autonômica cardíaca ao estímulo gravitacional e concluíram que pacientes com SFM têm aumento da atividade simpática cardíaca e diminuída atividade vagal para o coração quando comparados a indivíduos saudáveis.
Pacientes com SFM submetidos a um simples teste de estresse envolvendo o ato de ficar de pé, com seu sobrecarregado sistema simpático, tornam-se incapazes de responder, significando que o sistema já estava exausto. Sabe-se que, ao levantar, o sangue tende a ficar acumulado nas partes baixas do corpo. Em circunstâncias normais, há uma imediata onda de estimulação simpática que compensa essa alteração sangüínea e mantém a circulação normal para a cabeça. Pacientes com SFM apresentam resposta anormal e seu sistema simpático falha em responder, propriamente, ao estresse do ortostatismo. Com base nessas experiências, propõe-se que disautonomia é freqüente em indivíduos com SFM. Hiporreatividade simpática oferece explicação coerente para a fadiga constante e outros sintomas associados com baixa pressão arterial, tais como vertigem, confusão e fraqueza. Esse fenômeno pode ser comparado ao que aconteceria a uma máquina constantemente forçada que se torna incapaz de aumentar a velocidade por posterior estimulação(33). A hiperatividade simpática constante também explica os distúrbios de sono associados com a SFM. Sabe-se que o tônus parassimpático predomina durante estágios profundos de sono e que, segundos antes do despertar, há uma onda de estimulação simpática. Estudos polissonográficos mostram que os portadores de SFM, que possuem estimulação simpática constante, têm episódios freqüentes de excitação e despertar(33).
Adler e Geenen(34) referem que a hiperatividade simpática presente na SFM, especialmente aparente à noite, pode indicar aumento do impulso simpático ou alteração no controle normal da atividade do SNA pelo sono. Outra vez nos deparamos com o desafio da questão: a alteração simpática é causa ou efeito na SFM?
Cohen et al.(9) postulam que a hiperatividade simpática no repouso poderia estar relacionada em parte a sintomas como fadiga, distúrbios do sono, parestesias e síndrome do cólon irritável. Os investigadores que estudaram diretamente a síndrome do cólon irritável, uma comorbidade freqüentemente presente em fibromiálgicos, também relatam alterações consistentes com hiperatividade simpática(35,36). Karling et al.(37) e Heitkemper et al.(38) estudaram a variabilidade do ritmo cardíaco em pacientes com essa síndrome e relataram resultados compatíveis com hiperatividade simpática noturna e resposta inadequada desses pacientes ao estresse ortostático. Hiperatividade simpática também pode explicar as mãos frias e pegajosas (pseudofenômeno de Raynaud) e a constante secura da boca, freqüentemente, vistas em pessoas com SFM(33).
Como explicar as características que definem a SFM: dor difusa e sensibilidade à palpação em pontos específicos? Propõe-se o mecanismo conhecido em medicina como dor simpaticamente mantida. Esse tipo de dor é caracterizado por instalação após o trauma, por sua independência a qualquer dano tissular e pela presença de alodinia. Isto significa que o problema repousa na transmissão da dor. A neuralgia pós-herpética, a neuropatia diabética e a distrofia simpático-reflexa (DSR) são exemplos de dor neuropática. Sugere-se que a SFM seja uma forma generalizada de distrofia simpático-reflexa. A síndrome da dor simpaticamente mantida é fundamentada experimentalmente: estudos realizados em animais mostram que o trauma pode desencadear hiperatividade simpática constante e, em tal instância, os nervos transmissores de dor são alterados e anormalmente ativados pela noradrenalina (fenômeno conhecido como dor evocada por noradrenalina)(39).
Martinez-Lavin(39) relata vários pontos de coincidência entre as características clínicas da SFM e da DSR ou, como atualmente é conhecida, síndrome da dor regional complexa (SDRC) e sugere que a dor da SFM poderia ser mantida por hiperatividade simpática. O fato de a DSR apresentar alterações localizadas facilitou o estudo da sua patogenia e seu reconhecimento como uma entidade real, enquanto, para a SFM, são necessários novos estudos para esclarecer como a hiperatividade simpática levaria à dor crônica e à alodinia. Um forte argumento em favor da participação do sistema nervoso simpático na SDRC é a considerável melhora da dor após o bloqueio simpático. No único estudo publicado sobre bloqueio simpático regional em SFM, Bengtsson e Bengtsson(20) mostraram que o bloqueio do gânglio estrelado com bupivacaína reduz significativamente o número de tender points e a dor no repouso, o que sugere que a dor, na SFM, é responsiva a manobras simpatolíticas. Esses autores sugerem, então, o termo dor simpaticamente mantida para caracterizar essa dor.
Um estudo piloto, randomizado, controlado e duplo-cego com 20 pacientes com SFM, 20 pacientes com AR e 20 controles sadios compara a dor evocada por noradrenalina entre esses pacientes. Avaliou-se a presença da dor e sua intensidade nos 5 minutos posteriores à injeção de 10 &181;g/0,1 ml de noradrenalina no antebraço de um lado em comparação com a de 0,1 ml de soro fisiológico no outro antebraço. Dor mediada por noradrenalina era diagnosticada quando a injeção dela produzia maior dor que a injeção do placebo. Observou-se essa resposta em 80% dos pacientes com SFM, 30% dos pacientes com AR e 30% dos controles. A intensidade da dor, medida em escala visual analógica, foi maior nos pacientes com SFM (2,5± 2,5) que nos pacientes com AR (0,3 ± 0,7) e que nos controles saudáveis (0,3 ± 0,8). Os autores concluíram que os pacientes com SFM têm dor evocada por noradrenalina e que esse achado reforça a hipótese de que a SFM possa ser uma síndrome com dor simpaticamente mediada ou simpaticamente mantida(40).
Na SFM, a hiperatividade simpática persistente, principalmente no período noturno, acarreta adaptações fisiológicas que estão associadas à hiporresponsividade do sistema simpático em situações em que o paciente é exposto ao estresse. Uma das hipóteses para explicar essa bioadaptação negativa do sistema nervoso simpático está em evidências científicas que mostram que o aumento crônico de adrenalina circulante (hiperatividade simpática) promove downregulation no número de b2 adrenorreceptores em músculos esqueléticos e no pulmão. Tais alterações estão acompanhadas de um deslocamento para a direita da curva dose-resposta da estimulação agonista dos receptores, significando a necessidade de quantidades maiores de agonista para eliciar respostas obtidas anteriormente à instalação da adaptação fisiológica(41,42).
A associação entre SFM e dessensibilização adrenérgica é defendida por Maekawa et al.(43), em um artigo de revisão, quando eles consideram que a responsividade cardiovascular reduzida, observada freqüentemente em pacientes com SFM, poderia ser explicada em grande parte por uma função diminuída dos receptores a e b adrenérgicos. Quando se fala em dor crônica, sempre presente na SFM, esses autores observam que a hipoperfusão intramuscular consistentemente observada em pacientes com dor muscular crônica pode ser devida a fatores como descondicionamento, efeito de drogas ou baixo volume plasmático como resultado de outras anormalidades sistêmicas, mas uma hipótese razoavelmente explicativa para a hipoperfusão muscular na SFM seria a da dessensibilização agonista-induzida de receptores b adrenérgicos. Há resultados preliminares desse grupo de pesquisadores que corroboram essa hipótese(44). Eles avaliaram a função de receptores b2-adrenérgicos em linfócitos de oito mulheres fibromiálgicas e de nove controles pareados, usando o fato de que a ativação desses receptores produz adenosina monofosfato-cíclico (AMPc). Os linfócitos foram estimulados com isoproterenol (um agonista b). Os resultados mostraram que os níveis de AMPc aumentaram significativamente durante a estimulação com isoproterenol no grupo controle, mas aumento semelhante não foi visto no grupo das mulheres com SFM. Os achados podem indicar que as pacientes têm dessensibilização adrenérgica (b2), mas novos estudos são necessários, com maior número de indivíduos e, talvez, maior refinamento.
Os achados presentes não afastam a hipótese de desordem do processo sensorial central. A desordem sensorial central e a desordem na perfusão muscular não são mutuamente excludentes e, mais provavelmente, ocorrem em conjunto. Tal fato é mencionado porque é improvável um aspecto único estar causando a dor muscular e, provavelmente, um modelo multifatorial serviria melhor(43).
Claw et al.(45), na intenção de verificar componentes aferentes e eferentes da função autonômica em pacientes com SFM, examinaram a responsividade cardíaca ao isoproterenol, um agonista b-adrenérgico. A dose de isoproterenol que produzia aumento do ritmo cardíaco de 25 bpm/min foi muito maior em indivíduos com SFM que nos controles (sexo e idade pareados). Os autores ressaltam que 8/18 portadores de SFM apresentaram valores quatro vezes mais elevados que os controles, o que, para eles, sugere subgrupos de pacientes com padrões diferentes de resposta. Esse efeito drástico na dose do isoproterenol necessária para evocar uma mesma resposta sugere diminuição do número ou da responsividade celular à ocupação do b-adrenorreceptor.
Investigações genômicas emergentes vêm contribuindo para elucidar a participação do sistema simpático na SFM. A catecol-O-metiltransferase (COMT) é uma enzima que inativa catecolaminas e drogas que contenham o grupamento catecol. O gene que codifica a COMT está mapeado e a influência do polimorfismo desse gene vem sendo investigada, na busca de seu envolvimento na patogênese de várias desordens psiquiátricas e na percepção da dor. O significado do polimorfismo do gene que expressa a COMT foi estudado na SFM. Consideraram-se três polimorfismos: LL (low/baixo), LH (low/high/intermediário) e HH (high/alto) que determinam a taxa de degradação das catecolaminas ou drogas catecólicas. Gürsoy et al.(46) relataram que 73,8% das mulheres com SFM tinham baixa ou intermediária atividade enzimática e 26,2%, elevada atividade enzimática. Esse resultado, variante LL muito representada e variante HH pouco representada, resulta em baixa ou elevada degradação de catecolaminas, respectivamente. Isso quer dizer que quanto mais baixa a atividade enzimática, mais catecolamina há no meio. Esses resultados corroboram a idéia de sistema simpático hiperativo na SFM e evidenciam o envolvimento do polimorfismo da COMT na SFM.
Nackley et al.(47), após demonstrarem que variantes genéticas da COMT são preditivas para o desenvolvimento de desordem temporomandibular (uma síndrome de dor crônica) e associam-se à sensibilidade à dor experimental, sugeriram uma base genética para as variações individuais de percepção da dor e para o desenvolvimento de condições de dor crônica: variantes associadas com elevada sensibilidade à dor produzem mais baixas atividades de COMT. Para caracterizar a forma como níveis elevados de catecolaminas, resultados de reduzida atividade da COMT, modulam o aumento da sensibilidade à dor, reduziram a atividade da COMT, em ratos, pelo uso de um inibidor da enzima, e observaram a responsividade comportamental desses animais a estímulos mecânicos ou térmicos. Os autores mostraram que os animais com atividade da COMT deprimida possuíam maior sensibilidade aos estímulos propostos e que este fenômeno era completamente bloqueado pelo antagonista de b receptor (propranolol). Assim, concluiram que a sensibilidade à dor COMT-dependente é mediada via receptores beta localizados em vários órgãos periféricos e no SNC. Associaram seus dados àqueles da literatura e sugeriram que a inibição da COMT resulta em aumento na sensibilidade à dor via mecanismos adrenérgicos.
Em definitivo, mesmo se há inúmeros problemas periféricos e centrais que podem ser associados à fibromialgia, nenhum processo fisiopatológico foi identificado como sendo a causa específica da fibromialgia. A compreensão da SFM como uma patologia que envolve alterações do SNA – disautonomia – é uma vertente plausível que busca, principalmente, encontrar subsídios científicos para o tratamento dessa síndrome. Não se sabe se causa ou conseqüência, mas parece evidente que as alterações do SNA podem orientar uma abordagem terapêutica que busque equilibrar o sistema simpático alterado. A proposta que emerge deste estudo, que leva em conta a hiperatividade simpática e sua baixa reatividade a situações estressoras de qualquer natureza, é o uso de medicamentos e tratamentos não-farmacológicos que possam corrigir as conseqüências da hiperatividade simpática, qual seja o uso de substâncias ou tratamentos que possam corrigir a downregulation de b-receptores, que parece envolvida na gênese e/ou manutenção dos sintomas da SFM, principalmente da dor que tão adversamente afeta o desempenho e a qualidade de vida dos portadores dessa síndrome que, dia após dia, têm que se confrontar com esse "sofrimento invisível".
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Endereço para correspondência:
Luiza Cristina Lacerda Jacomini
Rua 12, 703, CEP 74140-040, Goiânia, GO
e-mail: lunalacerda@uol.com.br
Recebido em 30/03/07.
Aprovado, após revisão, em 15/08/07.
Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.
Serviço de Reumatologia do Departamento de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás.