9 de set. de 2010

Incompletude: A Prova e o Paradoxo de Goumldel

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Quando o filósofo alemão Friedrich Nietzsche afirmou que não há fatos, só interpretações, não poderia imaginar que poucas décadas depois seria confirmado por um matemático. Considerado um dos três grandes nomes das ciências exatas do século XX, o austríaco Kurt Goumldel apresentou, em 1930, aos 23 anos, seus dois teoremas da incompletude, que demonstram a existência de sentenças matemáticas indecidíveis, cujo paradoxo está em não poder ser nem provadas nem refutadas, ainda que, a partir de uma interpretação razoável, possam ser atestadas como verdadeiras.
Sua descoberta no campo da lógica matemática é comparável à teoria da relatividade, de Albert Einstein, e ao princípio da incerteza, de Werner Heisenberg. Juntos, os três abalaram o mito da objetividade científica. Os teoremas de Goumldel tiveram consequumlências para o pensamento sobre a natureza da verdade, do conhecimento e da certeza, como demonstra o livro "Incompletude: A Prova e o Paradoxo de Goumldel", em que a autora, Rebecca Goldstein, conta histórias saborosas e as idiossincrasias de um gênio louco, autor de descobertas matemáticas indecifráveis, em texto acessível a leitores leigos.
Os episódios pitorescos vão desde a sua fama de mulherengo - famosa no Círculo de Viena, onde todas as vezes que aparecia uma jovem bonita, estava procurando por ele - até sua total aversão a contatos pessoais. Sobre sua vida amorosa e sexual o relato é de um casamento tão estranho quanto surpreendente para um personagem sisudo: depois da morte do pai, o austríaco casou-se com uma prostituta a quem introduziu na sociedade americana, causando espécie pelas roupas espalhafatosas, não apenas estranhas ao ambiente acadêmico como absolutamente opostas ao estilo - ou à falta de estilo - social de Goumldel.
Capaz de passar horas ao telefone, sobretudo se o assunto fosse matemática, foi um personagem introspectivo, de poucos amigos e raros contatos pessoais em Princeton, a universidade americana na qual passou a maior parte da vida acadêmica. Apesar da diferença de idades, foi com Einstein, 27 anos mais velho, que Goumledel travou a maioria das conversas, pessoais ou científicas, em caminhadas diárias, em Nova Jersey, onde ambos compartilhavam, além do interesse acadêmico, o sentimento de exílio. Colegas no então recém-criado Instituto de Estudos Avançados, haviam fugido da Europa nazista durante a Segunda Guerra Mundial e, embora fossem tidos como muito diferentes, foram amigos inseparáveis. A companhia de Einstein, que deixou registrados muitos elogios ao austríaco, amenizou a hostilidade com que os pares de Goumldel o encaravam.
"A inevitável incompletude até de nossos sistemas formais de pensamento demonstra que não existe um fundamento sólido que sirva de base a qualquer sistema", argumenta Rebecca. Ela afirma ainda que a noção de verdade objetiva é um mito socialmente construído. No Brasil, sua obra teve repercussão em 1991, quando os pesquisadores Newton da Costa e Francisco Doria, respectivamente doutores em matemática e física, demonstraram que a indecidibilidade se aplica também à teoria do caos - trabalho reconhecido como inovador pela mais importante publicação científica do mundo, a revista "Nature". "Não existe um sistema de computador que possa distinguir o caos do não-caos", explica Doria, um dos muitos cientistas que discordam da idéia de que a teoria de Goumldel possa servir para abalar a objetividade.
O filósofo Jacques Derrida se valeu dos teoremas da incompletude para marcar seu pensamento pelos indecidíveis - palavra usada por ele pela primeira vez em "Disseminação", livro de 1971 em que faz referência a Goumldel. "Uma proposição indecidível, Goumldel a demonstrou, é uma proposição que, dado um sistema de axiomas, não é nem uma consequumlência analítica ou dedutível dos axiomas, nem está em contradição com eles, não é nem verdadeiro, nem falso do ponto de vista destes axiomas", escreveu o filósofo, que dali em diante demonstraria com os indecidíveis a fraqueza dos conceitos sobre os quais se apóia o conhecimento.
Para o professor Rafael Haddock-Lobo, pós-doutorando em filosofia na USP e autor do recém-lançado "Derrida e o Labirinto de Inscrições" (editora Zouk), a indecidibilidade que aparece em "Disseminação" é um marco no pensamento do filósofo. "É quando Derrida começa a formalizar este estranho lugar do discurso da desconstrução que surge a referência à Goumldel. Se não há esta plena certeza dos lugares, então todo discurso é, de certo modo, marginal, e deve assumir esta indecidibilidade. Em sua leitura de Goumldel, Derrida vai propor que se leve em consideração não mais a lógica tradicional do "ou isto ou aquilo", que regulou todo o pensamento ocidental, mas outra lógica que embarace estes termos tão pretensamente bem definidos", explica.
Em Derrida, os paradoxos que os teoremas da incompletude apontam são incorporados e fazem parte das questões filosóficas que discute. "Esse movimento requer uma paixão pelos paradoxos e uma vontade de permanecer neles", diz Haddock-Lobo. Em Goumldel, o paradoxo dos teoremas surgiu como uma consequumlência indesejada do seu trabalho. Rebecca o classifica como o maior lógico desde Aristóteles e explica que Goumldel só chegou à idéia de incompletude porque estava trabalhando com a ambição de alcançar uma conclusão matemática que comprovasse o realismo da lógica matemática. O fato de sua obra ter entrado para a história não apenas como um paradigma anti-objetividade, mas como uma de suas forças propulsoras mais poderosas, se constitui numa imensa ironia. Ou no mais insolúvel dos paradoxos.
"Incompletude: A Prova e o Paradoxo de Goumldel". - Rebecca Goldstein