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Pedro Paulo Monteiro
AO APERTAR SUA MÃO, O QUE VOCÊ SENTE? A sensação está na mão ou no cérebro? Lembro-me de que essa pergunta foi o início de uma discussão na aula de Fisiologia do curso de pós-graduação em Neurologia. De um lado, os defensores da neurofisiologia mecanicista; do outro, os adeptos da neurociência filosófica. Embora todos fossem alunos do mesmo curso, a turma se dividiu. Profissionais costumam discutir para sustentar suas opiniões.
Eu quis acalorar a discussão usando um koan que havia lido em um livro budista. O koan é um enigma zen usado na prática Rinzai para se atingir a iluminação. Ele não pode ser resolvido pelo raciocínio lógico. Para tentar resolvê-lo, o aprendiz deve ir além do raciocínio dedutivo. Existem vários koans; o que usei foi um bastante conhecido: “Qual o som de uma única mão ao bater palmas?” O silêncio de ambos os grupos foi imediato; ninguém conhecia os koans, e, portanto, acreditaram que eu estivesse achincalhando a discussão. Alguns saíram da sala me acusando de irônico. Não quis ser sarcástico; apenas acreditei que pudéssemos pensar o cérebro de outro modo que não fosse pelo pensamento linear. Mesmo porque a própria pergunta se parecia com um koan e não podia ser respondida de modo linear. Se, na Neurologia, pudéssemos usar koans zen, poderíamos fazer essa pergunta da seguinte maneira: “Ao apertar sua mão, onde está a sua mão, no cérebro ou em A mente e o significado da vida 310806.pmd 21 31/8/2006, 11:15 22 você?” Pode parecer brincadeira, mas, se filosofarmos um pouco mais, será que poderíamos responder, com certeza, onde está o nosso corpo? Na Neurologia, nem sempre foi possível obter respostas claras para os grandes enigmas. Desde Descartes (1596-1650), que acreditava que os movimentos da alma lançavam os espíritos em direção aos poros das paredes dos ventrículos cerebrais, para depois viajarem pelos nervos colocando a vontade da alma em prática, Thomas Willis (1621-1675), “viciado em abrir cabeças” como ele próprio se denominava, que insistia em descobrir os lugares secretos da mente, passando por Franz Joseph Gall (1757–1828) com sua incrível frenologia, até semana passada (março de 2006), quando escutei de um renomado neurocirurgião, e professor catedrático de uma conceituada universidade federal brasileira, acerca de uma cirurgia realizada por ele: “Eu retirei grande parte do cérebro, porém as estruturas nobres foram preservadas”. Isso só me faz refletir com tristeza que pouco se mudou. Muda-se o cenário, mas continua o mesmo paradigma. As respostas continuam sendo interpretações lógicas, de cunho dedutivo. Quando fiz o curso de Neurologia, estava na efervescente década das pesquisas do cérebro. Novas descobertas surgiam todos os dias, e, com elas, as refutações brotavam abundantes. Tínhamos novos modos de olhar e compreender o incompreensível. Cada livro tentava ser mais didático do que o outro. Para ser de fácil entendimento, tudo era simplificado. Enveredar pela trilha da mente sempre foi uma viagem fantástica. Na primeira parte deste livro, pretendo caminhar pelas absurdas, porém não menos válidas, tentativas dos diversos pesquisadores do cérebro na busca da sede da alma. Atravessaremos os pensamentos desses grandes homens e veremos que a mente não é o cérebro. Para abordar a mente, proponho trafegar em minha própria história, pois não poderia escrever sobre a mente na terceira pessoa. Assim, em vários momentos trarei fragmentos de minhas lembranças e fatos construídos em minha própria história. A meu ver, as árduas tentativas em compreender a mente sempre foram, e continuarão sendo, a busca do significado da vida. Quando comecei a me interessar pela neurologia, foi no sentido de buscar respostas para as minhas reflexões. Meus pensamentos sempre foram inconstantes acerca do que é o viver, o adoecer, e o morrer. Pelo fato de querer ser terapeuta (muito diferente de ser fisioterapeuta), o meu interesse sempre esteve no sujeito e não no objeto. Infelizmente, não consegui encontrar mestres que me fornecessem A mente e o significado da vida 310806.pmd 22 31/8/2006, 11:15 23 respostas fundamentais, mesmo que apenas fossem aproximações da natureza do real. Atualmente alcancei o entendimento de que ser humano é ser sujeito e, conseqüentemente, é ser enigma, estranho, indeterminado. Estudar neurologia não me possibilitou atingir respostas confortáveis, pois ela sempre esteve direcionada aos problemas, aquilo que não funciona bem, conhecer procedimentos para solucionar patologias. Demorei muito tempo para entender que a doença é uma peça do teatro da mente, com enredo bem escrito e personagens bem trajados. O corpo, nesse caso, é o palco em que todos podem assistir à encenação. Lembro-me de Carlos, meu primeiro paciente neurológico, um rapaz de 22 anos. Nós tínhamos a mesma idade na época. Ele sofrera um acidente de moto. Estava em alta velocidade quando entrou debaixo de um caminhão carregado de tijolos. Ele teve diversas fraturas na coluna cervical, deixando-o com uma lesão medular severa. Carlos não conseguia mexer nenhuma parte do corpo senão o pescoço. Mesmo assim, não tinha muita amplitude de movimento, porque teve de ser submetido à cirurgia de estabilização da coluna cervical. Numa das sessões terapêuticas, ele estava muito nervoso e esbravejava, sendo extremamente grosseiro com as pessoas. Quando cheguei perto dele, achei que deveria confortá-lo e, cheio de mim mesmo, fui logo lançando minha “filosofia de botequim”. É uma pena não poder lembrar meu próprio rosto, mas, com certeza, eu tentava dissimular minha fragilidade. Eu disse, com a minha mão repousando no ombro dele: “Não fique assim, eu sei o quanto é difícil para você”. O olhar dele foi inesquecível. Lembro-me, como se fosse hoje, daqueles olhos verdes de raiva. Eram olhos penetrantes e violentos. Ele parou de esbravejar por um instante e disse calmamente: “Você sabe o que é ter uma lesão medular e ficar paralisado do pescoço para baixo? Sabe o que é depender de outras pessoas para fazer as coisas para você? Sabe o que é perder o próprio corpo para sempre? Se não sabe, pare de falar merda e cale a boca seu babaca!” Aquilo veio com tanta intensidade que o meu corpo ficou anestesiado. Não pude agüentar; todas as minhas couraças profissionais se desarmaram, e fiquei totalmente nu. A minha vulnerabilidade acabava de ser violentada por palavras certeiras. Tive de me despedir e dizer à mãe dele que não podia tratá-lo naquele dia; voltaria dali a dois dias. Quando entrei no meu carro, chorei copiosamente. Não podia entender o que estava acontecendo. Sentia uma mistura de sentimento de humilhação, fragilidade, insignificância, impotência, incompetência. O ego profissional se esfacelou, não sobrando nada. Depois de alguns minutos, olhei-me no espelho retrovisor do carro e disse a mim mesmo: “Se eu não souber tratar de gente como gente, eu desisto aqui e agora”. Dali para frente, eu resolvi buscar outros conhecimentos que pudessem me formar melhor; precisava aprender a calar caso desconhecesse os sentimentos alheios. Não tive a oportunidade de estar com ele novamente; Carlos morreu dois dias após o ocorrido, por overdose de cocaína. Essa imagem mental andará comigo por muitas léguas. Carlos me ensinou, naquele ínfimo momento, o que não aprendi em anos na faculdade. É preciso renovar o aprendido desde sempre. Como dizia o grande poeta português Fernando Pessoa: Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu... Se esquecer é mais difícil do que lembrar, nada melhor do que aprender a ser incapaz num mundo “tão competente”, repleto de fachadas. Quase 20 anos após esse fato, percebo ainda que competência profissional nada mais é do que história de heroísmo criada para satisfazer a egos esburacados. Muitos profissionais da saúde carregam o fardo do mito do herói, acreditam ser o salvador; tudo pode ser solucionado, bastando, para isso, se atirar nas pesquisas de ponta. Somos construídos no modelo do auto-engano para nos sentirmos seguros. Quando tratamos de gente, tudo ocorre de modo tão complexo que é impossível saber a origem e o fim de um processo. O humano é indeterminado, porquanto impossível de se desvelar por completo. O desdobramento de uma história só pode ocorrer no contexto presente. Mesmo assim, tudo não passa de história criada por nossas mentes.
A meu ver, se as histórias não fossem criadas, muitos não suportariam o tranco do dia-a-dia da profissão. Porém, até aonde vai o auto-engano para nos sentirmos satisfeitos? A Neurologia é tão enigmática quanto os koans. Buscar respostas não é o mesmo que ter certeza de possui-las. Ao se aproximar de certezas, cai-se em paradoxos. “A natureza resguarda o ventre escuro donde gera incansavelmente o que vemos, ouvimos, degustamos e dizemos.”A ciência se constitui na procura de respostas, e não em conclusões absolutas. Atualmente os grandes cientistas aceitam que suas teorias são apenas descrições da realidade. Recebemos a herança amarga da certeza. Desde Aristóteles, viver na incerteza e ser transitório se tornou inaceitável. O incompreendido foi fragmentado e analisado a fim de se obter clareza. Quanto mais se corta e isola, mais se afasta do contexto. O que não é contextual não pode ser real. Em nossos dias, os detalhes são enaltecidos, e o que pode ser visto e analisado é considerado verdadeiro, enquanto o invisível se tornou somente crença. O ego cartesiano é exaltado em detrimento da natureza do vir-a-ser heraclitiano. O limite do conhecimento passou a ser inaceitável para as mentes que se alimentam de poder. Isso é tão freqüente que, nos discursos diários, perder o poder de conhecer passou a significar perder o próprio paraíso. Muitos afirmam que a divindade habita egos. Quanto maior a certeza, maior o jogo das sombras. A dança das imagens mentais engana, de modo que não conseguimos perceber que estamos sendo joguetes na mão da mãe natureza. Viver é encenar roteiros escritos por nós mesmos. Assim, pretendo mostrar, na segunda parte deste livro, que somos livres para criar nossas histórias. Nada pode ser trazido para dentro de nós a não ser em forma de imagens. São essas imagens mentais que nos fazem ser quem somos e ver o mundo como vemos. Assistir ao espetáculo da vida é construir mentalmente o próprio espetáculo enquanto ele se desenrola. No processo do vir-a-ser, nada sabemos, só podemos criar histórias para a nossa satisfação. O que nos faz humanos é ser munidos de consciência e, portanto, saber que sabemos. Na terceira parte, quero enveredar pela consciência a fim de trazer à luz o que nos torna conhecedores de nossa própria realidade. Porém, conhecer a realidade de maneira objetiva se tornou um problema profundo, principalmente após as descobertas da nova física. Ser parte daquilo que observamos revelou nossa limitação, e a pretensão de conhecer o mundo de modo impessoal passou a ser um grande equívoco. Nunca estaremos livres de nossas lentes e sempre vamos estar à mercê de nossos filtros. A mente humana é um teatro em que são encenados símbolos, e o resultado final de cada ato é o corpo (fresh symbol), paisagem de nós mesmos. O corpo nos fornece a nitidez de nossa experiência. Só a experiência é real? Dentro de nós, existe uma potência, um modus operandi do vir-a-ser. Isto é, na mente, existe o que queremos que exista. Ter uma mente é ter uma escolha. Na potência, tudo pode ser construído; porém, a construção será sempre inacabada, incerta e imperfeita. A dúvida engendra um movimento à frente, rumo à evolução da espécie humana. O real é apenas um conceito, símbolo criado por nós mesmos. A sensibilidade do corpo permite a ele reagir ao ambiente, aprender e acumular experiências. A estrutura humana evoluiu e aprendeu a decifrar a realidade baseada principalmente na compleição fornecida pelos sentidos. O que não se pode sentir passou a ser visto como irreal. Contudo, a evolução da mente humana propiciou a articulação de códigos simbólicos. Daí surgiram expressões artísticas, escopos religiosos, filosofias existenciais, aventuras reflexivas. Novos jogos da natureza se estabeleceram, e passamos a transcender o corpo para atingir o numinoso. Quanto maior o conhecimento, maior o questionamento, e mais nos chafurdamos no lodo da dúvida de quem somos nós, por que somos como somos, se o que está na mente é real, se podemos acreditar naquilo que sentimos, e se desconfiar do real é duvidar de nossa própria existência. O propósito deste livro não é preencher lacunas, e sim abrir espaços para outras construções criativas. O humano é inacabado; portanto, seria impossível determinar o indeterminado. De qualquer modo, é possível produzir novos conceitos, novas maneiras de ver o invisível. A ciência da física das partículas elementares tem se mostrado um instrumento hábil no auxílio do conhecimento daquilo que nossas sondas sensoriais não podem captar. A teoria da incerteza de Heisenberg já minimizou muitas de nossas pretensões científicas. Porém, muitos ainda não querem acreditar nisso, deixando de lado o micro para se voltar apenas ao macro. Quando retiramos parte do real, ele deixa de ser real. Viver na dúvida é também uma possibilidade. Ficar menos poderoso é também sofrer menos. Quando o poder acaba, termina também o sofrimento de não almejá-lo. Na incerteza e no inacabado, está a história de todos nós humanos. Enquanto vivermos, estaremos em busca de desdobrar conhecimento em significado. Isso nos gera a motilidade, um movimento interno de origem desconhecida que nos propicia coragem em continuar na senda do desvelamento. Não podemos viver sem significado. Fomos dotados de consciência; no entanto, é preciso desvelar, cumprir, criar, decidir. Enfrentamos momentos difíceis, nos quais somos convencidos a comprar alicerces prontos. Sem decisão, não há responsabilidade; sem responsabilidade, não há vida. Sem a oportunidade de escolha, ficamos à deriva, somos cerceados à opinião das massas. Atravessamos uma época difícil cujas condutas destrutivas, em decorrência do paradigma competitivo, nos geraram medo de apostar no novo; a lei da sobrevivência se firmou no modelo equivocado do vencer pela eliminação do adversário; a incerteza, que sempre produziu saídas criativas, se transformou em desesperança e posturas apáticas; a experiência da beleza passou a ser vendida em lojas de departamento, enquanto a televisão e as redes virtuais da internet nos enganam com promessas de um mundo seguro e sólido; as religiões criam modelos de heróis salvadores baseados na cultura cinematográfica de Hollywood; a transcendência ao numinoso se tornou caminho simples a partir do auxílio de substâncias alucinógenas; o cérebro se transformou em uma máquina computacional cujo programa pode ser construído de acordo com as exigências do freguês; as universidades se interessam pelo conhecimento vendido; assim, o importante é obter o certificado, um ticket que permite a livre passagem para o mundo profissional. Enfim, chegamos à era do paradigma pós-humano, referenciado no avanço tecnológico cujos instrumentos modernos fornecem todas as certezas, quantificando e somando medidas precisas, fundamentadas em uma lógica linear que tudo pode. Nessa etapa, acredita-se que o humano em si é insuficiente, e a forma biológica, inadequada às demandas do meio. Por isso, é necessário reprojetar o humano de maneira competente a fim de que ele se torne uma máquina exímia, sem erros ou perturbações. Estamos mais próximos da ficção do que daquilo que podemos denominar de real. Nos dias de hoje, o simulacro se tornou verdade absoluta. Pensar o humano sem refletir acerca da mente e da consciência não faz sentido. Para lograr o conhecimento, será preciso se deparar com o invisível, o intangível. Porém, o que elude a percepção merece atenção? A meu ver, sem descrever o invisível, é impossível atingir o visível, a matéria, o corpóreo. Sem corpo, não há mundo, só sonho sem forma. Como reaver a forma perdida? Pela re-volta e pela responsabilidade. Voltar para dentro em busca de si mesmo a fim de responder às demandas da vida. Esse é o propósito crucial de todo ser vivo. No visível, tudo se mostra simples, porém repleto de buracos. Ao enveredarmos pela senda do autoconhecimento, nos deparamos com algo mais profundo e observamos que o visível é somente a ponta do iceberg. O veladotem muito a nos ensinar. Por isso, não basta conhecer o cérebro para saber quem somos. Repetirei, diversas vezes, que o cérebro não é a mente, pois a proposta deste livro é buscar sentido e elucidar equívocos. Convido o leitor a ir além do neocórtex. Não devemos aquiescer ao velado sem tentar desdobrá-lo. Mesmo que saibamos que a mente constrói histórias para nos satisfazer, é preciso se revoltar e ser responsável. Se a afirmação de alguns cientistas quânticos estiver certa, quem sabe encontraremos aqui respostas apaziguadoras para o nosso caminho. Se tudo sai antes de nós para depois podermos perceber o que está fora, quem sabe descobriremos que o significado da vida está no interlúdio da concretização; no espaço entre o eu e o não-eu, no trânsito da relação humana. Portanto, quero propor, neste livro, uma viagem pelos escombros de minha própria mente. Não quero enunciar caminhos sem que eu possa estar neles. Não posso conceber a mente do outro, pois nela existe algo a mais, inacessível a minha compreensão. Sendo assim, quero propor aqui uma jornada por minha própria história, lembranças da infância de um garoto curioso que buscava atravessar a janela do quarto a fim de descobrir o que existia fora, desafiando o próprio aprendizado, arriscando perder as raízes maternas. Um garoto que buscou esculpir paisagens belas e sensíveis para viver melhor. Creio que somos capazes de romper com todas as forças que nos aprisionaram, mesmo que essas forças sejam familiares. Nascemos sozinhos e viveremos sozinhos, porque ser é um vir-a-ser contínuo. Não há como escapar de nós mesmos senão pelo modelo do auto-engano. As sensações e as manifestações de meu corpo, de toda uma época, estão vivas. Envelhecer me permitiu ter uma perspectiva totalmente diferente do tempo. Por isso, buscar respostas em mim mesmo é convidar o leitor a estar ao meu lado, desvendar a si mesmo. Ninguém constrói caminhos para estar isolado; quero compartilhar com você minha trajetória e meus questionamentos, mesmo sabendo da presença infinita de minha solidão.
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No Zen-budismo, um Koan é uma narrativa, um
diálogo, uma questão ou uma afirmação que contém
aspectos que são imediatamente inacessíveis à razão.
O Koan tem como objetivo propiciar a Illuminação do
aspirante a zen-budista. O Koan é um problema que o
discípulo do Zen deverá resolver, mas cuja solução não
poderá ser atingida apenas pelo pensamento
intelectual. O Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua
Portuguesa assim define um Koan: no Zen-budismo, o
Koan é uma sentença ou pergunta de caráter
enigmático e paradoxal, usado em práticas monacais
de meditação com o objetivo de dissolver o raciocínio
lógico e conceitual, conduzindo o praticante a uma
súbita Illuminação intuitiva.
Os métodos mais usados no Zen com vista à
Illuminação (Satori, em japonês) são o trabalho sobre
a respiração, a postura e os Koans. O Zen-budismo
japonês divide-se essencialmente em duas escolas:
Soto e Rinzai. A primeira valorizou os dois primeiros
métodos; já a segunda deu ênfase essencialmente ao
método dos Koans.
Enfim, os Koans mais famosos foram compilados por
Mumon Ekai (1183 – 1260), da Escola Rinzai, sob o
título de Wu-men kuan (Mumonkan) – a Porta sem
porta (Mu, a barreira do Supremo Conhecimento). Eles
são as portas para a verdade e para a libertação. Mas,
não são portas já abertas, mas portas a abrir. Daí, que
no próprio Mumonkan se possa ler:
O Grande Caminho não tem porta,
Milhares de estradas lá vão dar.
Aquele que atravessa esta Porta sem porta
Caminha livremente entre o céu e a Terra.
Aquele que tiver se libertado dos pensamentos ilusórios
e realizado a unidade entre o interior e o exterior será
como um mudo que teve um sonho, mas que não o
pode comunicar aos outros. O céu ficará aturdido e a
Terra tremerá.
1º Koan:
Mal comeces a pensar se 'tem' ou 'não tem' és um
homem morto.
2º Koan:
Aquele que passa a Porta sem porta marchará de mão
dadas com toda a linhagem de Patriarcas, olhando com
o mesmo olho e ouvindo com o mesmo ouvido.
3º Koan:
Batendo duas mãos uma na outra temos um som. Qual
é o som de uma única mão?
4º Koan:
Quem pensa que entendeu se questiona.
Quem pensa que não entendeu questiona os outros.
Quem entendeu não diz nada.
E quem não entendeu também não diz nada!
5º Koan:
Antes de os teus pais terem nascido, qual era a tua
natureza original?
6º Koan:
Qual é o som do silêncio?
7º Koan:
A própria mente desencaminha a mente; acautela-te
contra a mente.
8º Koan:
Não use o arco e flecha de outrem.
Não cavalgue o cavalo de outra pessoa.
Não discuta as falhas de outro.
Não se meta nos negócios de uma outra pessoa.
9º Koan:
Um Mestre oferece um melão a um discípulo, e
pergunta: — Que te parece o melão? Tem bom gosto?
— Sim, sim! Muito bom gosto! – responde o discípulo.
O Mestre, então, faz outra pergunta: — O que tem
bom gosto: o melão ou a língua?
10º Koan:
Como se pratica a esgrima sem espada?
11º Koan:
Quem é você?
12º Koan:
Suba uma escada de 99 de graus até o último degrau.
Agora, suba mais um degrau...
13º Koan:
Qual era o seu rosto original – aquele que você possuía
antes de nascer?
14º Koan:
Todos os fenômenos são impermanentes. Tudo que
nasce deve finalmente morrer. O que nasce e o que
morre?
15º Koan:
Não siga o passado; não se perca no futuro. O passado
não existe mais; o futuro ainda não chegou.
Observando profundamente a vida como ela é, aqui e
agora, é que permanecemos equilibrados e livres.
16º Koan:
Um cão tem uma natureza de Buddha? Se você disser
que sim, eu vou bater em você. Se você disser não, eu
vou bater em você. Vá e descubra a resposta. E,
qualquer que seja a sua resposta, eu vou bater em
você!
17º Koan:
Um homem, viajando em um campo, encontrou um
tigre. Ele correu, com o tigre em seu encalço.
Aproximando-se de um precipício, tomou as raízes
expostas de uma vinha selvagem em suas mãos, e
pendurou-se precipitadamente abaixo, na beira do
abismo. O tigre o farejava acima. Tremendo, o homem
olhou para baixo e viu, no fundo do precipício, outro
tigre a esperá-lo. Apenas a vinha o sustinha. Mas, ao
olhar para a planta, viu dois ratos, um negro e outro
branco, roendo aos poucos sua raiz. Neste momento,
seus olhos perceberam um belo morango vicejando
perto. Segurando a vinha com uma mão, ele pegou o
morango com a outra e o comeu. — Que delícia! — ele
disse.
18º Koan:
Nan-In, um Mestre japonês durante a Era Meiji,1
recebeu um professor universitário, que veio lhe
inquirir sobre Zen. Este iniciou um longo discurso
intelectual sobre suas dúvidas.
Nan-In, enquanto isso, servia o chá. Ele encheu
completamente a xícara de seu visitante, e continuou a
enchê-la, derramando chá pela borda.
O professor, vendo o excesso se derramando, não
pode mais se conter e disse:
— Está muito cheia! Não cabe mais chá!
Então, o Mestre Nan-in disse: — Como esta xícara,
você está cheio de suas próprias opiniões e
especulações. Como eu posso lhe demonstrar o Zen
sem que você primeiro esvazie a sua xícara?
19º Koan:
Um grande shogun japonês, chamado Nobunaga,
decidiu atacar o inimigo, embora ele tivesse apenas um
décimo do número de homens que seu oponente.
Mesmo assim, ele sabia que poderia ganhar, mas seus
soldados tinham dúvidas. No caminho para a batalha,
ele parou em um templo Shintó, e disse aos seus
homens:
— Após eu visitar o relicário eu jogarei uma moeda. Se
a cara sair, iremos vencer; se sair a coroa, iremos com
certeza perder. O destino nos tem em suas mãos.
Nobunaga entrou no templo e ofereceu uma prece
silenciosa. Então, saiu e jogou a moeda. A cara
apareceu. Seus soldados ficaram tão entusiasmados
para lutar, que acabaram ganhando a batalha
facilmente.
Após a batalha, seu segundo em comando comentou
orgulhoso:
— Ninguém pode mudar a mão do destino!
— Realmente não — disse Nobunaga, mostrando-lhe
reservadamente a moeda, que tinha sido duplicada,
possuindo a cara impressa nos dois lados.
20º Koan:
Um orgulhoso guerreiro, chamado Nobushige, foi até o
Mestre Hakuin, e perguntou-lhe: — Se existe um
paraíso e um inferno, onde estão?
— Quem é você? — perguntou Hakuin.
— Eu sou um samurai! — o guerreiro exclamou.
— Você? Um guerreiro? — riu-se Hakuin. — Que
espécie de governante teria tal guarda? Sua aparência
é a de um mendigo!
Nobushige ficou tão raivoso que começou a
desembainhar sua espada, mas Hakuin continuou:
— Então, você tem uma espada! Sua arma
provavelmente está tão cega que não cortará minha
cabeça...
O samurai desembainhou a espada e avançou pronto
para matar, gritando de ódio. Neste momento, Hakuin
anunciou:
— Acaba de se abrir o Portal do Inferno!
Ao ouvir estas palavras, e percebendo a sabedoria do
Mestre, o samurai embainhou sua espada, e fez-lhe
uma profunda reverência.
— Acaba de se abrir o Portal do Paraíso — disse
suavemente o Mestre Hakuin.
21º Koan:
Um homem queria ficar rico e, todos os dias, pedia a
Deus que atendesse às suas súplicas. Em um dia de
inverno, ao voltar da oração, avistou, presa no gelo do
caminho, uma polpuda carteira de dinheiro. No mesmo
instante, julgou-se atendido. Mas, como a carteira
resistisse aos seus esforços para retirá-la, urinou em
cima dela, a fim de derreter o gelo que a retinha. E, foi
então que despertou na cama toda molhada!
22º Koan:
Mestre Tokuan (cujo nome significa pepino) estava
morrendo. Um discípulo se aproximou, e perguntou-lhe
qual era o seu testamento. Takuan respondeu que não
tinha testamento. Mas o discípulo insistiu:
— Não tendes nada? Nada para dizer?
— A vida não passa de um sonho2 — disse o Mestre
Tokuan.
E expirou.
23º Koan:
Um renomado Mestre Zen dizia que seu maior
ensinamento era este: Buddha é a sua Mente. De tão
impressionado com a profundidade implicada neste
axioma, um monge decidiu deixar o monastério e se
retirar em um local afastado para meditar nesta peça
de sabedoria. Ele viveu vinte anos como eremita
refletindo no grande ensinamento.
Um dia, ele encontrou outro monge, que viajava na
floresta próxima à sua ermida. Logo, o monge eremita
soube que o viajante também havia estudado com o
mesmo Mestre Zen.
— Por favor, diga-me: você conhece o grande
ensinamento do Mestre — perguntou ansioso o monge
eremita.
Os olhos do monge viajante brilharam. E disse: — Ah!
O Mestre foi muito claro sobre isto. Ele disse que seu
maior ensinamento era: Buddha não é a sua mente.
24º Koan:
Certa vez, o Mestre taoísta Chuang Tzu sonhou que era
uma borboleta, voando alegremente aqui e ali. No
sonho, ele não tinha mais a mínima consciência de sua
individualidade como pessoa. Ele era realmente uma
borboleta. Repentinamente, ele acordou, e se
descobriu deitado em sua cama, uma pessoa
novamente.
Mas, então, ele pensou para si mesmo:
'Antes, fui um homem que sonhava ser uma borboleta
ou, agora, sou uma borboleta que sonha ser um
homem?'
25º Koan:
O primeiro-ministro da Dinastia Tang era um herói
nacional pelo seu sucesso tanto como homem de
Estado quanto como líder militar. Mas, a despeito de
sua fama, poder e riqueza, ele se considerava um
humilde e devoto buddhista. Freqüentemente ele
visitava seu Mestre Zen favorito para estudar com ele,
e eles pareciam se dar muito bem. O fato de ser era
primeiro-ministro aparentemente não tinha efeito em
sua relação, que parecia ser simplesmente a de um
reverendo Mestre e seu respeitoso estudante.
Um dia, durante sua visita usual, o primeiro-ministro
perguntou ao Mestre: — Mestre, o que é o egoísmo, de
acordo com o Buddhismo?
O rosto do Mestre ficou vermelho, e num tom de voz
extremamente desdenhoso e insultuoso, gritou em
resposta:
— Que tipo de pergunta estúpida é esta?
Tal resposta, tão inesperada, chocou tanto o
primeiro-ministro, que, imediatamente, arrogante e
com raiva, retorquiu:
— Como ousa me tratar assim?
Neste momento, o Mestre Zen sorriu e disse: — Isto,
Excelência, é egoísmo!
26º Koan:
O Certa vez Chuang Tzu e um amigo caminhavam à
margem de um rio.
— Veja os peixes nadando na corrente — disse Chuang
Tzu. — Eles estão realmente felizes...
— Você não é um peixe — replicou arrogantemente seu
amigo. — Então, você não pode saber se eles estão
felizes!
— Você não é Chuang Tzu — disse Chuang Tzu. —
Então, como você pode afirmar que eu não sei que os
peixes estão felizes?
27º Koan:
Após dez anos de aprendizagem, Tenno atingiu o título
de Mestre Zen. Em um dia chuvoso, ele foi visitar o
famoso Mestre Nan-In. Quando ele entrou no mosteiro,
o Mestre, imediatamente, recebeu-o com uma questão:
— Você deixou seus tamancos e seu guarda-chuva no
alpendre?
— Sim, Mestre — respondeu Tenno.
— Então, diga-me — continuou o Mestre: — Você
colocou seu guarda-chuva à esquerda de seu calçado
ou à direita?
Tenno não soube responder, percebendo, afinal, que
ainda não havia alcançado a plena atenção. Ele, então,
se tornou aprendiz do Mestre Nan-In, e estudou sob
sua orientação por mais dez anos.
28º Koan:
Um monge pôs-se a caminho de uma longa
peregrinação para encontrar Buddha. Ele levou muitos
anos em sua busca até alcançar a terra onde se dizia
que vivia o Senhor Buddha. Ao cruzar o sagrado rio que
cortava este país, o monge olhava em torno, enquanto
o barqueiro conduzia o bote. Ele percebeu algo
flutuando que vinha em sua direção. Quando o objeto
chegou mais perto, ele viu que era um cadáver – e que
o morto era ele mesmo! O monge perdeu todo o
controle e deu um grito de dor à visão de si mesmo,
rígido e sem vida, flutuando suavemente na corrente
do grande rio. Neste instante percebeu que ali estava
começando sua busca pela liberação... E, então, ele
soube, definitivamente, que sua busca por Buddha
havia terminado.3
29º Koan:
O amanhã não é real. É uma ilusão. A única realidade é
o agora. O verdadeiro sofrimento é viver ignorando
este 'Dharma'.
30º Koan:
O Santo Dharma – o Primeiro Princípio – é um vasto
vazio, sem nada santo dentro dele.
31º Koan:
Dois peregrinos estavam perdidas no deserto. Estavam
morrendo de inanição e sede. Finalmente, avistaram
um alto muro. Do outro lado, podiam ouvir o som de
quedas d'água e de pássaros cantando. Acima, podiam
ver os galhos de uma árvore frutífera atravessando e
pendendo sobre o muro. Seus frutos pareciam
deliciosos. Um dos homens subiu o muro e
desapareceu no outro lado. O outro, em vez disso,
saciou sua fome com as frutas que sobressaíam da
árvore, ali mesmo, e retornou ao deserto para ajudar
outros perdidos a encontrar o caminho para o oásis.
32º Koan:
Dois monges estavam lavando suas tigelas no rio
quando perceberam um escorpião que estava se
afogando. Um dos monges, imediatamente, pegou-o e
o colocou na margem. No processo, ele foi picado. Ele
voltou para terminar de lavar sua tigela, e, novamente,
o escorpião caiu no rio. O monge salvou o escorpião, e
novamente foi picado. O outro monge, então,
perguntou:
— Amigo, por que você continua a salvar o escorpião
quando você sabe que sua natureza é agir com
agressividade, picando-o?
— Porque — respondeu o monge — agir com
compaixão é a minha natureza.
33º Koan:
O monge perguntou ao Mestre:
— Como posso sair do 'Samsara'?
O Mestre respondeu:
— Quem te colocou nele?4
34º Koan:
O pensamento lógico não pode ser usado para obter a
Compreensão; apenas com a sensibilidade da
não-mente alcança-se a Verdade.5
35º Koan:
Quando estiver com fome, coma. Quando estiver
cansado, durma.
36º Koan:
Buscar o Estado Búddhico apenas fazendo meditação é
matar o Buddha.
37º Koan:
Terminaste a refeição? Então, vai lavar tuas tigelas!
38º Koan:
Não façais nada violento; praticai somente o aquilo que
é justo e equilibrado.
39º Koan:
O 'Samsara' é como um caroço de manga, que
plantamos para comer o fruto. Quando a grande árvore
cresce e dá frutos, as pessoas os comem, para, em
seguida, plantar os caroços. E dos caroços nascem
grandes mangueiras, que, novamente, dão frutos.
Deste modo, a mangueira não tem fim. E assim, da
mesma forma, nascemos aqui, morremos ali...
Nascemos... Morremos... Nascemos... Morremos... Isto
é 'Samsara'.
40º Koan:
Não é o mesmo nome, o mesmo espírito e o mesmo
corpo que nascem depois da morte. Este nome, este
espírito e este corpo criam a ação. Pela ação ou Karma,
nascem outro nome, outro espírito e outro corpo.
Koan Vegetariano
Humildemente, vou dar minha contribuição com um
pequeno diálogo koânico sobre o vegetarianismo.
O Católico: — Você é vegetariano?
O Ateu: — Sim; sou.
O Católico: — Como você sabe, eu sou católico. Na
Bíblia, não há qualquer passagem que recomende o
vegetarianismo. O próprio Jesus comia peixe.
O Ateu: — Comia? Tem certeza? Bem, cada um come o
que quer. Mas, quem sou eu para julgar Jesus! Jesus é
Jesus; eu sou eu. E nós dois somos um.
1. O Período Meiji ou Era Meiji do Japão constitui-se
em um período de quarenta e cinco anos do reinado do
Imperador Mutsuhito (Quioto, 3 de novembro de 1852
– Tóquio, 30 de julho de 1912), o 122º imperador do
Japão na lista tradicional de sucessão, que se estendeu
de 8 de setembro de 1868 a 30 de julho de 1912.
Nesta fase, o Japão conheceu uma acelerada
modernização, vindo a se constituir em uma potência
mundial.
2. Aqui, novamente, me lembrei de Émile Dantinne
(Sâr Hieronymus, Sacerdos in Æternum) ao fazer a sua
Grande Iniciação em Huy, no dia 21 de maio de 1969,
com a idade de 85 anos. Ao seu lado, como descreve
Marco Antonio Coutinho, velando por ele, sua filha
Marie-Louise pôde ouvi-lo sussurrar as últimas
palavras; — A gente não sabe nada. E partiu para
sondar o insondável que nos dá a mão por sobre o
muro.
3. Até aqui, evitei comentar os koans, pois o
entendimento é pessoal e deverá provir do interior.
Mas, este merece uma rápida ponderação. Enquanto
buscarmos a guarida de deuses e de avatares, de
mestres ascensos e de hierofantes, de sapientíssimos e
de eruditos, do lado de fora, aqui, ali, lá e acolá, não
seremos mais do que cadáveres viventes. Isto, talvez,
poderá se afigurar meio duro de ler, mas não posso
escrever de outra maneira, pois, enquanto
dependermos deste ou daquele, disto ou daquilo... A
Santa Sabedoria – a Santa SOPhIa – está disponível
para todos – no Coração de cada um. Precisamos
compreender que a Santa SOPhIa é intransferível e
intransmissível. Ou, por trabalho e mérito, nós A
conquistamos... Ou, dormindo e pedindo, ignorantes
continuaremos. E não adianta fazer como o monge que
perguntou ao Mestre: — Como posso sair do
'Samsara'? Enfim, somos nós quem criamos o
'Samsara'; somos nós que dele deve(re)mos nos
desvencilhar. Ou, de tanto (re)encarnar, acabaremos
criando um calo na alma!
Pedro Paulo Monteiro
AO APERTAR SUA MÃO, O QUE VOCÊ SENTE? A sensação está na mão ou no cérebro? Lembro-me de que essa pergunta foi o início de uma discussão na aula de Fisiologia do curso de pós-graduação em Neurologia. De um lado, os defensores da neurofisiologia mecanicista; do outro, os adeptos da neurociência filosófica. Embora todos fossem alunos do mesmo curso, a turma se dividiu. Profissionais costumam discutir para sustentar suas opiniões.
Eu quis acalorar a discussão usando um koan que havia lido em um livro budista. O koan é um enigma zen usado na prática Rinzai para se atingir a iluminação. Ele não pode ser resolvido pelo raciocínio lógico. Para tentar resolvê-lo, o aprendiz deve ir além do raciocínio dedutivo. Existem vários koans; o que usei foi um bastante conhecido: “Qual o som de uma única mão ao bater palmas?” O silêncio de ambos os grupos foi imediato; ninguém conhecia os koans, e, portanto, acreditaram que eu estivesse achincalhando a discussão. Alguns saíram da sala me acusando de irônico. Não quis ser sarcástico; apenas acreditei que pudéssemos pensar o cérebro de outro modo que não fosse pelo pensamento linear. Mesmo porque a própria pergunta se parecia com um koan e não podia ser respondida de modo linear. Se, na Neurologia, pudéssemos usar koans zen, poderíamos fazer essa pergunta da seguinte maneira: “Ao apertar sua mão, onde está a sua mão, no cérebro ou em A mente e o significado da vida 310806.pmd 21 31/8/2006, 11:15 22 você?” Pode parecer brincadeira, mas, se filosofarmos um pouco mais, será que poderíamos responder, com certeza, onde está o nosso corpo? Na Neurologia, nem sempre foi possível obter respostas claras para os grandes enigmas. Desde Descartes (1596-1650), que acreditava que os movimentos da alma lançavam os espíritos em direção aos poros das paredes dos ventrículos cerebrais, para depois viajarem pelos nervos colocando a vontade da alma em prática, Thomas Willis (1621-1675), “viciado em abrir cabeças” como ele próprio se denominava, que insistia em descobrir os lugares secretos da mente, passando por Franz Joseph Gall (1757–1828) com sua incrível frenologia, até semana passada (março de 2006), quando escutei de um renomado neurocirurgião, e professor catedrático de uma conceituada universidade federal brasileira, acerca de uma cirurgia realizada por ele: “Eu retirei grande parte do cérebro, porém as estruturas nobres foram preservadas”. Isso só me faz refletir com tristeza que pouco se mudou. Muda-se o cenário, mas continua o mesmo paradigma. As respostas continuam sendo interpretações lógicas, de cunho dedutivo. Quando fiz o curso de Neurologia, estava na efervescente década das pesquisas do cérebro. Novas descobertas surgiam todos os dias, e, com elas, as refutações brotavam abundantes. Tínhamos novos modos de olhar e compreender o incompreensível. Cada livro tentava ser mais didático do que o outro. Para ser de fácil entendimento, tudo era simplificado. Enveredar pela trilha da mente sempre foi uma viagem fantástica. Na primeira parte deste livro, pretendo caminhar pelas absurdas, porém não menos válidas, tentativas dos diversos pesquisadores do cérebro na busca da sede da alma. Atravessaremos os pensamentos desses grandes homens e veremos que a mente não é o cérebro. Para abordar a mente, proponho trafegar em minha própria história, pois não poderia escrever sobre a mente na terceira pessoa. Assim, em vários momentos trarei fragmentos de minhas lembranças e fatos construídos em minha própria história. A meu ver, as árduas tentativas em compreender a mente sempre foram, e continuarão sendo, a busca do significado da vida. Quando comecei a me interessar pela neurologia, foi no sentido de buscar respostas para as minhas reflexões. Meus pensamentos sempre foram inconstantes acerca do que é o viver, o adoecer, e o morrer. Pelo fato de querer ser terapeuta (muito diferente de ser fisioterapeuta), o meu interesse sempre esteve no sujeito e não no objeto. Infelizmente, não consegui encontrar mestres que me fornecessem A mente e o significado da vida 310806.pmd 22 31/8/2006, 11:15 23 respostas fundamentais, mesmo que apenas fossem aproximações da natureza do real. Atualmente alcancei o entendimento de que ser humano é ser sujeito e, conseqüentemente, é ser enigma, estranho, indeterminado. Estudar neurologia não me possibilitou atingir respostas confortáveis, pois ela sempre esteve direcionada aos problemas, aquilo que não funciona bem, conhecer procedimentos para solucionar patologias. Demorei muito tempo para entender que a doença é uma peça do teatro da mente, com enredo bem escrito e personagens bem trajados. O corpo, nesse caso, é o palco em que todos podem assistir à encenação. Lembro-me de Carlos, meu primeiro paciente neurológico, um rapaz de 22 anos. Nós tínhamos a mesma idade na época. Ele sofrera um acidente de moto. Estava em alta velocidade quando entrou debaixo de um caminhão carregado de tijolos. Ele teve diversas fraturas na coluna cervical, deixando-o com uma lesão medular severa. Carlos não conseguia mexer nenhuma parte do corpo senão o pescoço. Mesmo assim, não tinha muita amplitude de movimento, porque teve de ser submetido à cirurgia de estabilização da coluna cervical. Numa das sessões terapêuticas, ele estava muito nervoso e esbravejava, sendo extremamente grosseiro com as pessoas. Quando cheguei perto dele, achei que deveria confortá-lo e, cheio de mim mesmo, fui logo lançando minha “filosofia de botequim”. É uma pena não poder lembrar meu próprio rosto, mas, com certeza, eu tentava dissimular minha fragilidade. Eu disse, com a minha mão repousando no ombro dele: “Não fique assim, eu sei o quanto é difícil para você”. O olhar dele foi inesquecível. Lembro-me, como se fosse hoje, daqueles olhos verdes de raiva. Eram olhos penetrantes e violentos. Ele parou de esbravejar por um instante e disse calmamente: “Você sabe o que é ter uma lesão medular e ficar paralisado do pescoço para baixo? Sabe o que é depender de outras pessoas para fazer as coisas para você? Sabe o que é perder o próprio corpo para sempre? Se não sabe, pare de falar merda e cale a boca seu babaca!” Aquilo veio com tanta intensidade que o meu corpo ficou anestesiado. Não pude agüentar; todas as minhas couraças profissionais se desarmaram, e fiquei totalmente nu. A minha vulnerabilidade acabava de ser violentada por palavras certeiras. Tive de me despedir e dizer à mãe dele que não podia tratá-lo naquele dia; voltaria dali a dois dias. Quando entrei no meu carro, chorei copiosamente. Não podia entender o que estava acontecendo. Sentia uma mistura de sentimento de humilhação, fragilidade, insignificância, impotência, incompetência. O ego profissional se esfacelou, não sobrando nada. Depois de alguns minutos, olhei-me no espelho retrovisor do carro e disse a mim mesmo: “Se eu não souber tratar de gente como gente, eu desisto aqui e agora”. Dali para frente, eu resolvi buscar outros conhecimentos que pudessem me formar melhor; precisava aprender a calar caso desconhecesse os sentimentos alheios. Não tive a oportunidade de estar com ele novamente; Carlos morreu dois dias após o ocorrido, por overdose de cocaína. Essa imagem mental andará comigo por muitas léguas. Carlos me ensinou, naquele ínfimo momento, o que não aprendi em anos na faculdade. É preciso renovar o aprendido desde sempre. Como dizia o grande poeta português Fernando Pessoa: Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu... Se esquecer é mais difícil do que lembrar, nada melhor do que aprender a ser incapaz num mundo “tão competente”, repleto de fachadas. Quase 20 anos após esse fato, percebo ainda que competência profissional nada mais é do que história de heroísmo criada para satisfazer a egos esburacados. Muitos profissionais da saúde carregam o fardo do mito do herói, acreditam ser o salvador; tudo pode ser solucionado, bastando, para isso, se atirar nas pesquisas de ponta. Somos construídos no modelo do auto-engano para nos sentirmos seguros. Quando tratamos de gente, tudo ocorre de modo tão complexo que é impossível saber a origem e o fim de um processo. O humano é indeterminado, porquanto impossível de se desvelar por completo. O desdobramento de uma história só pode ocorrer no contexto presente. Mesmo assim, tudo não passa de história criada por nossas mentes.
A meu ver, se as histórias não fossem criadas, muitos não suportariam o tranco do dia-a-dia da profissão. Porém, até aonde vai o auto-engano para nos sentirmos satisfeitos? A Neurologia é tão enigmática quanto os koans. Buscar respostas não é o mesmo que ter certeza de possui-las. Ao se aproximar de certezas, cai-se em paradoxos. “A natureza resguarda o ventre escuro donde gera incansavelmente o que vemos, ouvimos, degustamos e dizemos.”A ciência se constitui na procura de respostas, e não em conclusões absolutas. Atualmente os grandes cientistas aceitam que suas teorias são apenas descrições da realidade. Recebemos a herança amarga da certeza. Desde Aristóteles, viver na incerteza e ser transitório se tornou inaceitável. O incompreendido foi fragmentado e analisado a fim de se obter clareza. Quanto mais se corta e isola, mais se afasta do contexto. O que não é contextual não pode ser real. Em nossos dias, os detalhes são enaltecidos, e o que pode ser visto e analisado é considerado verdadeiro, enquanto o invisível se tornou somente crença. O ego cartesiano é exaltado em detrimento da natureza do vir-a-ser heraclitiano. O limite do conhecimento passou a ser inaceitável para as mentes que se alimentam de poder. Isso é tão freqüente que, nos discursos diários, perder o poder de conhecer passou a significar perder o próprio paraíso. Muitos afirmam que a divindade habita egos. Quanto maior a certeza, maior o jogo das sombras. A dança das imagens mentais engana, de modo que não conseguimos perceber que estamos sendo joguetes na mão da mãe natureza. Viver é encenar roteiros escritos por nós mesmos. Assim, pretendo mostrar, na segunda parte deste livro, que somos livres para criar nossas histórias. Nada pode ser trazido para dentro de nós a não ser em forma de imagens. São essas imagens mentais que nos fazem ser quem somos e ver o mundo como vemos. Assistir ao espetáculo da vida é construir mentalmente o próprio espetáculo enquanto ele se desenrola. No processo do vir-a-ser, nada sabemos, só podemos criar histórias para a nossa satisfação. O que nos faz humanos é ser munidos de consciência e, portanto, saber que sabemos. Na terceira parte, quero enveredar pela consciência a fim de trazer à luz o que nos torna conhecedores de nossa própria realidade. Porém, conhecer a realidade de maneira objetiva se tornou um problema profundo, principalmente após as descobertas da nova física. Ser parte daquilo que observamos revelou nossa limitação, e a pretensão de conhecer o mundo de modo impessoal passou a ser um grande equívoco. Nunca estaremos livres de nossas lentes e sempre vamos estar à mercê de nossos filtros. A mente humana é um teatro em que são encenados símbolos, e o resultado final de cada ato é o corpo (fresh symbol), paisagem de nós mesmos. O corpo nos fornece a nitidez de nossa experiência. Só a experiência é real? Dentro de nós, existe uma potência, um modus operandi do vir-a-ser. Isto é, na mente, existe o que queremos que exista. Ter uma mente é ter uma escolha. Na potência, tudo pode ser construído; porém, a construção será sempre inacabada, incerta e imperfeita. A dúvida engendra um movimento à frente, rumo à evolução da espécie humana. O real é apenas um conceito, símbolo criado por nós mesmos. A sensibilidade do corpo permite a ele reagir ao ambiente, aprender e acumular experiências. A estrutura humana evoluiu e aprendeu a decifrar a realidade baseada principalmente na compleição fornecida pelos sentidos. O que não se pode sentir passou a ser visto como irreal. Contudo, a evolução da mente humana propiciou a articulação de códigos simbólicos. Daí surgiram expressões artísticas, escopos religiosos, filosofias existenciais, aventuras reflexivas. Novos jogos da natureza se estabeleceram, e passamos a transcender o corpo para atingir o numinoso. Quanto maior o conhecimento, maior o questionamento, e mais nos chafurdamos no lodo da dúvida de quem somos nós, por que somos como somos, se o que está na mente é real, se podemos acreditar naquilo que sentimos, e se desconfiar do real é duvidar de nossa própria existência. O propósito deste livro não é preencher lacunas, e sim abrir espaços para outras construções criativas. O humano é inacabado; portanto, seria impossível determinar o indeterminado. De qualquer modo, é possível produzir novos conceitos, novas maneiras de ver o invisível. A ciência da física das partículas elementares tem se mostrado um instrumento hábil no auxílio do conhecimento daquilo que nossas sondas sensoriais não podem captar. A teoria da incerteza de Heisenberg já minimizou muitas de nossas pretensões científicas. Porém, muitos ainda não querem acreditar nisso, deixando de lado o micro para se voltar apenas ao macro. Quando retiramos parte do real, ele deixa de ser real. Viver na dúvida é também uma possibilidade. Ficar menos poderoso é também sofrer menos. Quando o poder acaba, termina também o sofrimento de não almejá-lo. Na incerteza e no inacabado, está a história de todos nós humanos. Enquanto vivermos, estaremos em busca de desdobrar conhecimento em significado. Isso nos gera a motilidade, um movimento interno de origem desconhecida que nos propicia coragem em continuar na senda do desvelamento. Não podemos viver sem significado. Fomos dotados de consciência; no entanto, é preciso desvelar, cumprir, criar, decidir. Enfrentamos momentos difíceis, nos quais somos convencidos a comprar alicerces prontos. Sem decisão, não há responsabilidade; sem responsabilidade, não há vida. Sem a oportunidade de escolha, ficamos à deriva, somos cerceados à opinião das massas. Atravessamos uma época difícil cujas condutas destrutivas, em decorrência do paradigma competitivo, nos geraram medo de apostar no novo; a lei da sobrevivência se firmou no modelo equivocado do vencer pela eliminação do adversário; a incerteza, que sempre produziu saídas criativas, se transformou em desesperança e posturas apáticas; a experiência da beleza passou a ser vendida em lojas de departamento, enquanto a televisão e as redes virtuais da internet nos enganam com promessas de um mundo seguro e sólido; as religiões criam modelos de heróis salvadores baseados na cultura cinematográfica de Hollywood; a transcendência ao numinoso se tornou caminho simples a partir do auxílio de substâncias alucinógenas; o cérebro se transformou em uma máquina computacional cujo programa pode ser construído de acordo com as exigências do freguês; as universidades se interessam pelo conhecimento vendido; assim, o importante é obter o certificado, um ticket que permite a livre passagem para o mundo profissional. Enfim, chegamos à era do paradigma pós-humano, referenciado no avanço tecnológico cujos instrumentos modernos fornecem todas as certezas, quantificando e somando medidas precisas, fundamentadas em uma lógica linear que tudo pode. Nessa etapa, acredita-se que o humano em si é insuficiente, e a forma biológica, inadequada às demandas do meio. Por isso, é necessário reprojetar o humano de maneira competente a fim de que ele se torne uma máquina exímia, sem erros ou perturbações. Estamos mais próximos da ficção do que daquilo que podemos denominar de real. Nos dias de hoje, o simulacro se tornou verdade absoluta. Pensar o humano sem refletir acerca da mente e da consciência não faz sentido. Para lograr o conhecimento, será preciso se deparar com o invisível, o intangível. Porém, o que elude a percepção merece atenção? A meu ver, sem descrever o invisível, é impossível atingir o visível, a matéria, o corpóreo. Sem corpo, não há mundo, só sonho sem forma. Como reaver a forma perdida? Pela re-volta e pela responsabilidade. Voltar para dentro em busca de si mesmo a fim de responder às demandas da vida. Esse é o propósito crucial de todo ser vivo. No visível, tudo se mostra simples, porém repleto de buracos. Ao enveredarmos pela senda do autoconhecimento, nos deparamos com algo mais profundo e observamos que o visível é somente a ponta do iceberg. O veladotem muito a nos ensinar. Por isso, não basta conhecer o cérebro para saber quem somos. Repetirei, diversas vezes, que o cérebro não é a mente, pois a proposta deste livro é buscar sentido e elucidar equívocos. Convido o leitor a ir além do neocórtex. Não devemos aquiescer ao velado sem tentar desdobrá-lo. Mesmo que saibamos que a mente constrói histórias para nos satisfazer, é preciso se revoltar e ser responsável. Se a afirmação de alguns cientistas quânticos estiver certa, quem sabe encontraremos aqui respostas apaziguadoras para o nosso caminho. Se tudo sai antes de nós para depois podermos perceber o que está fora, quem sabe descobriremos que o significado da vida está no interlúdio da concretização; no espaço entre o eu e o não-eu, no trânsito da relação humana. Portanto, quero propor, neste livro, uma viagem pelos escombros de minha própria mente. Não quero enunciar caminhos sem que eu possa estar neles. Não posso conceber a mente do outro, pois nela existe algo a mais, inacessível a minha compreensão. Sendo assim, quero propor aqui uma jornada por minha própria história, lembranças da infância de um garoto curioso que buscava atravessar a janela do quarto a fim de descobrir o que existia fora, desafiando o próprio aprendizado, arriscando perder as raízes maternas. Um garoto que buscou esculpir paisagens belas e sensíveis para viver melhor. Creio que somos capazes de romper com todas as forças que nos aprisionaram, mesmo que essas forças sejam familiares. Nascemos sozinhos e viveremos sozinhos, porque ser é um vir-a-ser contínuo. Não há como escapar de nós mesmos senão pelo modelo do auto-engano. As sensações e as manifestações de meu corpo, de toda uma época, estão vivas. Envelhecer me permitiu ter uma perspectiva totalmente diferente do tempo. Por isso, buscar respostas em mim mesmo é convidar o leitor a estar ao meu lado, desvendar a si mesmo. Ninguém constrói caminhos para estar isolado; quero compartilhar com você minha trajetória e meus questionamentos, mesmo sabendo da presença infinita de minha solidão.
http://pedropaulomonteiro.com/curriculo.htm
No Zen-budismo, um Koan é uma narrativa, um
diálogo, uma questão ou uma afirmação que contém
aspectos que são imediatamente inacessíveis à razão.
O Koan tem como objetivo propiciar a Illuminação do
aspirante a zen-budista. O Koan é um problema que o
discípulo do Zen deverá resolver, mas cuja solução não
poderá ser atingida apenas pelo pensamento
intelectual. O Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua
Portuguesa assim define um Koan: no Zen-budismo, o
Koan é uma sentença ou pergunta de caráter
enigmático e paradoxal, usado em práticas monacais
de meditação com o objetivo de dissolver o raciocínio
lógico e conceitual, conduzindo o praticante a uma
súbita Illuminação intuitiva.
Os métodos mais usados no Zen com vista à
Illuminação (Satori, em japonês) são o trabalho sobre
a respiração, a postura e os Koans. O Zen-budismo
japonês divide-se essencialmente em duas escolas:
Soto e Rinzai. A primeira valorizou os dois primeiros
métodos; já a segunda deu ênfase essencialmente ao
método dos Koans.
Enfim, os Koans mais famosos foram compilados por
Mumon Ekai (1183 – 1260), da Escola Rinzai, sob o
título de Wu-men kuan (Mumonkan) – a Porta sem
porta (Mu, a barreira do Supremo Conhecimento). Eles
são as portas para a verdade e para a libertação. Mas,
não são portas já abertas, mas portas a abrir. Daí, que
no próprio Mumonkan se possa ler:
O Grande Caminho não tem porta,
Milhares de estradas lá vão dar.
Aquele que atravessa esta Porta sem porta
Caminha livremente entre o céu e a Terra.
Aquele que tiver se libertado dos pensamentos ilusórios
e realizado a unidade entre o interior e o exterior será
como um mudo que teve um sonho, mas que não o
pode comunicar aos outros. O céu ficará aturdido e a
Terra tremerá.
1º Koan:
Mal comeces a pensar se 'tem' ou 'não tem' és um
homem morto.
2º Koan:
Aquele que passa a Porta sem porta marchará de mão
dadas com toda a linhagem de Patriarcas, olhando com
o mesmo olho e ouvindo com o mesmo ouvido.
3º Koan:
Batendo duas mãos uma na outra temos um som. Qual
é o som de uma única mão?
4º Koan:
Quem pensa que entendeu se questiona.
Quem pensa que não entendeu questiona os outros.
Quem entendeu não diz nada.
E quem não entendeu também não diz nada!
5º Koan:
Antes de os teus pais terem nascido, qual era a tua
natureza original?
6º Koan:
Qual é o som do silêncio?
7º Koan:
A própria mente desencaminha a mente; acautela-te
contra a mente.
8º Koan:
Não use o arco e flecha de outrem.
Não cavalgue o cavalo de outra pessoa.
Não discuta as falhas de outro.
Não se meta nos negócios de uma outra pessoa.
9º Koan:
Um Mestre oferece um melão a um discípulo, e
pergunta: — Que te parece o melão? Tem bom gosto?
— Sim, sim! Muito bom gosto! – responde o discípulo.
O Mestre, então, faz outra pergunta: — O que tem
bom gosto: o melão ou a língua?
10º Koan:
Como se pratica a esgrima sem espada?
11º Koan:
Quem é você?
12º Koan:
Suba uma escada de 99 de graus até o último degrau.
Agora, suba mais um degrau...
13º Koan:
Qual era o seu rosto original – aquele que você possuía
antes de nascer?
14º Koan:
Todos os fenômenos são impermanentes. Tudo que
nasce deve finalmente morrer. O que nasce e o que
morre?
15º Koan:
Não siga o passado; não se perca no futuro. O passado
não existe mais; o futuro ainda não chegou.
Observando profundamente a vida como ela é, aqui e
agora, é que permanecemos equilibrados e livres.
16º Koan:
Um cão tem uma natureza de Buddha? Se você disser
que sim, eu vou bater em você. Se você disser não, eu
vou bater em você. Vá e descubra a resposta. E,
qualquer que seja a sua resposta, eu vou bater em
você!
17º Koan:
Um homem, viajando em um campo, encontrou um
tigre. Ele correu, com o tigre em seu encalço.
Aproximando-se de um precipício, tomou as raízes
expostas de uma vinha selvagem em suas mãos, e
pendurou-se precipitadamente abaixo, na beira do
abismo. O tigre o farejava acima. Tremendo, o homem
olhou para baixo e viu, no fundo do precipício, outro
tigre a esperá-lo. Apenas a vinha o sustinha. Mas, ao
olhar para a planta, viu dois ratos, um negro e outro
branco, roendo aos poucos sua raiz. Neste momento,
seus olhos perceberam um belo morango vicejando
perto. Segurando a vinha com uma mão, ele pegou o
morango com a outra e o comeu. — Que delícia! — ele
disse.
18º Koan:
Nan-In, um Mestre japonês durante a Era Meiji,1
recebeu um professor universitário, que veio lhe
inquirir sobre Zen. Este iniciou um longo discurso
intelectual sobre suas dúvidas.
Nan-In, enquanto isso, servia o chá. Ele encheu
completamente a xícara de seu visitante, e continuou a
enchê-la, derramando chá pela borda.
O professor, vendo o excesso se derramando, não
pode mais se conter e disse:
— Está muito cheia! Não cabe mais chá!
Então, o Mestre Nan-in disse: — Como esta xícara,
você está cheio de suas próprias opiniões e
especulações. Como eu posso lhe demonstrar o Zen
sem que você primeiro esvazie a sua xícara?
19º Koan:
Um grande shogun japonês, chamado Nobunaga,
decidiu atacar o inimigo, embora ele tivesse apenas um
décimo do número de homens que seu oponente.
Mesmo assim, ele sabia que poderia ganhar, mas seus
soldados tinham dúvidas. No caminho para a batalha,
ele parou em um templo Shintó, e disse aos seus
homens:
— Após eu visitar o relicário eu jogarei uma moeda. Se
a cara sair, iremos vencer; se sair a coroa, iremos com
certeza perder. O destino nos tem em suas mãos.
Nobunaga entrou no templo e ofereceu uma prece
silenciosa. Então, saiu e jogou a moeda. A cara
apareceu. Seus soldados ficaram tão entusiasmados
para lutar, que acabaram ganhando a batalha
facilmente.
Após a batalha, seu segundo em comando comentou
orgulhoso:
— Ninguém pode mudar a mão do destino!
— Realmente não — disse Nobunaga, mostrando-lhe
reservadamente a moeda, que tinha sido duplicada,
possuindo a cara impressa nos dois lados.
20º Koan:
Um orgulhoso guerreiro, chamado Nobushige, foi até o
Mestre Hakuin, e perguntou-lhe: — Se existe um
paraíso e um inferno, onde estão?
— Quem é você? — perguntou Hakuin.
— Eu sou um samurai! — o guerreiro exclamou.
— Você? Um guerreiro? — riu-se Hakuin. — Que
espécie de governante teria tal guarda? Sua aparência
é a de um mendigo!
Nobushige ficou tão raivoso que começou a
desembainhar sua espada, mas Hakuin continuou:
— Então, você tem uma espada! Sua arma
provavelmente está tão cega que não cortará minha
cabeça...
O samurai desembainhou a espada e avançou pronto
para matar, gritando de ódio. Neste momento, Hakuin
anunciou:
— Acaba de se abrir o Portal do Inferno!
Ao ouvir estas palavras, e percebendo a sabedoria do
Mestre, o samurai embainhou sua espada, e fez-lhe
uma profunda reverência.
— Acaba de se abrir o Portal do Paraíso — disse
suavemente o Mestre Hakuin.
21º Koan:
Um homem queria ficar rico e, todos os dias, pedia a
Deus que atendesse às suas súplicas. Em um dia de
inverno, ao voltar da oração, avistou, presa no gelo do
caminho, uma polpuda carteira de dinheiro. No mesmo
instante, julgou-se atendido. Mas, como a carteira
resistisse aos seus esforços para retirá-la, urinou em
cima dela, a fim de derreter o gelo que a retinha. E, foi
então que despertou na cama toda molhada!
22º Koan:
Mestre Tokuan (cujo nome significa pepino) estava
morrendo. Um discípulo se aproximou, e perguntou-lhe
qual era o seu testamento. Takuan respondeu que não
tinha testamento. Mas o discípulo insistiu:
— Não tendes nada? Nada para dizer?
— A vida não passa de um sonho2 — disse o Mestre
Tokuan.
E expirou.
23º Koan:
Um renomado Mestre Zen dizia que seu maior
ensinamento era este: Buddha é a sua Mente. De tão
impressionado com a profundidade implicada neste
axioma, um monge decidiu deixar o monastério e se
retirar em um local afastado para meditar nesta peça
de sabedoria. Ele viveu vinte anos como eremita
refletindo no grande ensinamento.
Um dia, ele encontrou outro monge, que viajava na
floresta próxima à sua ermida. Logo, o monge eremita
soube que o viajante também havia estudado com o
mesmo Mestre Zen.
— Por favor, diga-me: você conhece o grande
ensinamento do Mestre — perguntou ansioso o monge
eremita.
Os olhos do monge viajante brilharam. E disse: — Ah!
O Mestre foi muito claro sobre isto. Ele disse que seu
maior ensinamento era: Buddha não é a sua mente.
24º Koan:
Certa vez, o Mestre taoísta Chuang Tzu sonhou que era
uma borboleta, voando alegremente aqui e ali. No
sonho, ele não tinha mais a mínima consciência de sua
individualidade como pessoa. Ele era realmente uma
borboleta. Repentinamente, ele acordou, e se
descobriu deitado em sua cama, uma pessoa
novamente.
Mas, então, ele pensou para si mesmo:
'Antes, fui um homem que sonhava ser uma borboleta
ou, agora, sou uma borboleta que sonha ser um
homem?'
25º Koan:
O primeiro-ministro da Dinastia Tang era um herói
nacional pelo seu sucesso tanto como homem de
Estado quanto como líder militar. Mas, a despeito de
sua fama, poder e riqueza, ele se considerava um
humilde e devoto buddhista. Freqüentemente ele
visitava seu Mestre Zen favorito para estudar com ele,
e eles pareciam se dar muito bem. O fato de ser era
primeiro-ministro aparentemente não tinha efeito em
sua relação, que parecia ser simplesmente a de um
reverendo Mestre e seu respeitoso estudante.
Um dia, durante sua visita usual, o primeiro-ministro
perguntou ao Mestre: — Mestre, o que é o egoísmo, de
acordo com o Buddhismo?
O rosto do Mestre ficou vermelho, e num tom de voz
extremamente desdenhoso e insultuoso, gritou em
resposta:
— Que tipo de pergunta estúpida é esta?
Tal resposta, tão inesperada, chocou tanto o
primeiro-ministro, que, imediatamente, arrogante e
com raiva, retorquiu:
— Como ousa me tratar assim?
Neste momento, o Mestre Zen sorriu e disse: — Isto,
Excelência, é egoísmo!
26º Koan:
O Certa vez Chuang Tzu e um amigo caminhavam à
margem de um rio.
— Veja os peixes nadando na corrente — disse Chuang
Tzu. — Eles estão realmente felizes...
— Você não é um peixe — replicou arrogantemente seu
amigo. — Então, você não pode saber se eles estão
felizes!
— Você não é Chuang Tzu — disse Chuang Tzu. —
Então, como você pode afirmar que eu não sei que os
peixes estão felizes?
27º Koan:
Após dez anos de aprendizagem, Tenno atingiu o título
de Mestre Zen. Em um dia chuvoso, ele foi visitar o
famoso Mestre Nan-In. Quando ele entrou no mosteiro,
o Mestre, imediatamente, recebeu-o com uma questão:
— Você deixou seus tamancos e seu guarda-chuva no
alpendre?
— Sim, Mestre — respondeu Tenno.
— Então, diga-me — continuou o Mestre: — Você
colocou seu guarda-chuva à esquerda de seu calçado
ou à direita?
Tenno não soube responder, percebendo, afinal, que
ainda não havia alcançado a plena atenção. Ele, então,
se tornou aprendiz do Mestre Nan-In, e estudou sob
sua orientação por mais dez anos.
28º Koan:
Um monge pôs-se a caminho de uma longa
peregrinação para encontrar Buddha. Ele levou muitos
anos em sua busca até alcançar a terra onde se dizia
que vivia o Senhor Buddha. Ao cruzar o sagrado rio que
cortava este país, o monge olhava em torno, enquanto
o barqueiro conduzia o bote. Ele percebeu algo
flutuando que vinha em sua direção. Quando o objeto
chegou mais perto, ele viu que era um cadáver – e que
o morto era ele mesmo! O monge perdeu todo o
controle e deu um grito de dor à visão de si mesmo,
rígido e sem vida, flutuando suavemente na corrente
do grande rio. Neste instante percebeu que ali estava
começando sua busca pela liberação... E, então, ele
soube, definitivamente, que sua busca por Buddha
havia terminado.3
29º Koan:
O amanhã não é real. É uma ilusão. A única realidade é
o agora. O verdadeiro sofrimento é viver ignorando
este 'Dharma'.
30º Koan:
O Santo Dharma – o Primeiro Princípio – é um vasto
vazio, sem nada santo dentro dele.
31º Koan:
Dois peregrinos estavam perdidas no deserto. Estavam
morrendo de inanição e sede. Finalmente, avistaram
um alto muro. Do outro lado, podiam ouvir o som de
quedas d'água e de pássaros cantando. Acima, podiam
ver os galhos de uma árvore frutífera atravessando e
pendendo sobre o muro. Seus frutos pareciam
deliciosos. Um dos homens subiu o muro e
desapareceu no outro lado. O outro, em vez disso,
saciou sua fome com as frutas que sobressaíam da
árvore, ali mesmo, e retornou ao deserto para ajudar
outros perdidos a encontrar o caminho para o oásis.
32º Koan:
Dois monges estavam lavando suas tigelas no rio
quando perceberam um escorpião que estava se
afogando. Um dos monges, imediatamente, pegou-o e
o colocou na margem. No processo, ele foi picado. Ele
voltou para terminar de lavar sua tigela, e, novamente,
o escorpião caiu no rio. O monge salvou o escorpião, e
novamente foi picado. O outro monge, então,
perguntou:
— Amigo, por que você continua a salvar o escorpião
quando você sabe que sua natureza é agir com
agressividade, picando-o?
— Porque — respondeu o monge — agir com
compaixão é a minha natureza.
33º Koan:
O monge perguntou ao Mestre:
— Como posso sair do 'Samsara'?
O Mestre respondeu:
— Quem te colocou nele?4
34º Koan:
O pensamento lógico não pode ser usado para obter a
Compreensão; apenas com a sensibilidade da
não-mente alcança-se a Verdade.5
35º Koan:
Quando estiver com fome, coma. Quando estiver
cansado, durma.
36º Koan:
Buscar o Estado Búddhico apenas fazendo meditação é
matar o Buddha.
37º Koan:
Terminaste a refeição? Então, vai lavar tuas tigelas!
38º Koan:
Não façais nada violento; praticai somente o aquilo que
é justo e equilibrado.
39º Koan:
O 'Samsara' é como um caroço de manga, que
plantamos para comer o fruto. Quando a grande árvore
cresce e dá frutos, as pessoas os comem, para, em
seguida, plantar os caroços. E dos caroços nascem
grandes mangueiras, que, novamente, dão frutos.
Deste modo, a mangueira não tem fim. E assim, da
mesma forma, nascemos aqui, morremos ali...
Nascemos... Morremos... Nascemos... Morremos... Isto
é 'Samsara'.
40º Koan:
Não é o mesmo nome, o mesmo espírito e o mesmo
corpo que nascem depois da morte. Este nome, este
espírito e este corpo criam a ação. Pela ação ou Karma,
nascem outro nome, outro espírito e outro corpo.
Koan Vegetariano
Humildemente, vou dar minha contribuição com um
pequeno diálogo koânico sobre o vegetarianismo.
O Católico: — Você é vegetariano?
O Ateu: — Sim; sou.
O Católico: — Como você sabe, eu sou católico. Na
Bíblia, não há qualquer passagem que recomende o
vegetarianismo. O próprio Jesus comia peixe.
O Ateu: — Comia? Tem certeza? Bem, cada um come o
que quer. Mas, quem sou eu para julgar Jesus! Jesus é
Jesus; eu sou eu. E nós dois somos um.
1. O Período Meiji ou Era Meiji do Japão constitui-se
em um período de quarenta e cinco anos do reinado do
Imperador Mutsuhito (Quioto, 3 de novembro de 1852
– Tóquio, 30 de julho de 1912), o 122º imperador do
Japão na lista tradicional de sucessão, que se estendeu
de 8 de setembro de 1868 a 30 de julho de 1912.
Nesta fase, o Japão conheceu uma acelerada
modernização, vindo a se constituir em uma potência
mundial.
2. Aqui, novamente, me lembrei de Émile Dantinne
(Sâr Hieronymus, Sacerdos in Æternum) ao fazer a sua
Grande Iniciação em Huy, no dia 21 de maio de 1969,
com a idade de 85 anos. Ao seu lado, como descreve
Marco Antonio Coutinho, velando por ele, sua filha
Marie-Louise pôde ouvi-lo sussurrar as últimas
palavras; — A gente não sabe nada. E partiu para
sondar o insondável que nos dá a mão por sobre o
muro.
3. Até aqui, evitei comentar os koans, pois o
entendimento é pessoal e deverá provir do interior.
Mas, este merece uma rápida ponderação. Enquanto
buscarmos a guarida de deuses e de avatares, de
mestres ascensos e de hierofantes, de sapientíssimos e
de eruditos, do lado de fora, aqui, ali, lá e acolá, não
seremos mais do que cadáveres viventes. Isto, talvez,
poderá se afigurar meio duro de ler, mas não posso
escrever de outra maneira, pois, enquanto
dependermos deste ou daquele, disto ou daquilo... A
Santa Sabedoria – a Santa SOPhIa – está disponível
para todos – no Coração de cada um. Precisamos
compreender que a Santa SOPhIa é intransferível e
intransmissível. Ou, por trabalho e mérito, nós A
conquistamos... Ou, dormindo e pedindo, ignorantes
continuaremos. E não adianta fazer como o monge que
perguntou ao Mestre: — Como posso sair do
'Samsara'? Enfim, somos nós quem criamos o
'Samsara'; somos nós que dele deve(re)mos nos
desvencilhar. Ou, de tanto (re)encarnar, acabaremos
criando um calo na alma!